Educação

Alfabetização, um direito básico

É preciso coragem para forçar uma parada estratégica no início de cada ano letivo para identificar alunos não alfabetizados e dar início a uma força-tarefa pedagógica. Somente assim, o acesso se tornará permanente e resultará em sucesso

INÊS KISIL MISKALO — Diretora de Educação do Instituto Ayrton Senna

A alfabetização é um desafio recorrente para profissionais da educação e gestores públicos. O tema está presente a cada nova rodada de avaliação, nacional ou internacional, amostral ou censitária, como observamos recentemente com a divulgação de dados do Ideb 2023.  

Eis a nossa realidade. De acordo com os Sistemas Estaduais de Avaliação de 2023, 44% das crianças da rede pública no 2º ano do ensino fundamental ainda não estão alfabetizadas. Além disso, apenas 13% dos estudantes do 4º ano do ensino fundamental demonstram proficiência em leitura, conforme o Progress in International Reading Literacy Study (PILRS 2021), produzido pela Associação Internacional para a Avaliação do Desempenho Educacional (IEA, sigla em inglês). 

Os números para o 5º ano não são muito melhores: apenas 51% dos alunos alcançam o esperado em Língua Portuguesa e 37% em Matemática, de acordo com o SAEB/Ineo 2021. No nono ano, a situação se agrava, com esses índices caindo para 35% e 15%, respectivamente. 

Duas explicações logo surgem a partir desse cenário: nossas crianças não aprendem, e nossos sistemas não ensinam. Discordo frontalmente de ambas as afirmações. As crianças aprendem, e os sistemas procuram ensinar. No entanto, os processos pedagógicos carecem de ações impulsionadoras de sucesso.

Tais processos envolvem cinco passos objetivos. Primeiramente, o conhecimento da realidade: até onde o aluno avançou, onde parou e porque parou. O segundo é o planejamento: propostas adequadas à superação da dificuldade detectada, individual ou coletiva. Além disso, é preciso haver monitoramento da execução do planejado: diário em sala de aula, mensal na unidade escolar e na rede de ensino, por meio da observação docente e de instrumentos informais. Um quarto ponto é o replanejamento pedagógico com base na informação trazida pelo monitoramento. E, por fim, análise dos resultados como estratégia para que todos os alunos da rede se alfabetizem dentro do prazo predeterminado.

Não se trata de utopia, mas da construção, implantação e implementação de uma política de alfabetização adequada à realidade local, mas amparada no referencial nacional. Uma política pública necessita de uma causa a ser defendida, de um direito a ser garantido. Esse direito está na Constituição de 1988, artigo 205, e nos cinco primeiros artigos da Lei de Diretrizes e Bases (Lei nº 9.394/96). Um norte aonde chegar, como consta na Base Nacional Comum Curricular (Lei nº 13.415/2017).

Uma política pública envolve um sistema de formação para os educadores responsáveis diretos pelo processo que envolva conhecimentos sobre como se aprende e como se ensina, pois não há um método único, já que nem todas as crianças aprendem da mesma forma. Também precisa envolver prática sobre como planejar, manejo de classe, gestão de sala de aula, de escola e de rede de ensino e mentoria, bem como estágio em classes de alfabetização durante a formação acadêmica.  

Não menos importante, uma política se apoia em indicadores de sucesso, e respectivas metas parciais e finais, objetivos, simples e de fácil leitura. Em um sistema de monitoramento para acompanhamento mensal e consolidações aos níveis de turma, escola, região e rede de ensino e recursos financeiros, materiais e humanos para garantir a execução do planejamento.  

O monitoramento e o alcance gradual das metas evidenciam o nível de sucesso da política tanto para alunos que estejam na idade certa, 6 e 7 anos, quanto para aqueles que estejam além dessas idades e em anos avançados, mas ainda não alfabetizados. Trata-se de alunos que foram expostos a reprovações e ao abandono, além de serem contabilizados nas taxas de distorção idade/série. Situações essas que crescem à medida que se avançam os anos e as etapas escolares. 

Nossas crianças aprendem, e há ótimos profissionais alfabetizadores, potenciais mentores dos novos professores. Mas é preciso coragem para forçar uma parada estratégica no início de cada ano letivo para identificar alunos não alfabetizados e dedicar os primeiros meses do ano a uma força-tarefa que realize os cinco passos pedagógicos acima. Somente assim, o acesso se tornará permanente e resultará em sucesso.  

Isso ficou evidente em vários municípios que têm se destacado nas últimas avaliações sobre alfabetização e resultados do IDEB, em diferentes regiões, com distintos tamanhos e níveis socioeconômicos. Eles têm demonstrado que alfabetizar não é só ensinar a ler e escrever, mas também envolve matemática e outras linguagens, assim como a dimensão socioemocional, fundamental neste momento social que apresenta situações agressivas à saúde mental de crianças e jovens e de educadores. 

Convido o leitor a pesquisar alguns desses municípios que têm muito a ensinar sobre a construção do sucesso de seus alunos, como Boca do Acre (AM), Coruripe (AL), Licínio de Almeida (BA), Sobral (CE) e Domingos Mourão (PI), entre outros. Esses territórios acreditaram nos cinco passos e foram além, fizeram acontecer ao longo dos anos uma política pública baseada em evidências concretas. 

Educação é um processo, e política educacional sem continuidade deixa de ser política e se torna apenas um projeto ou um programa circunstancial com baixa perspectiva de sucesso.

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