Saúde

As doenças azuis

Em 2024, não há motivos para acreditar que uma doença infecciosa, como o mpox, não seja "problema nosso", não importa o local em que surgiu e o perfil do paciente

Quando éramos crianças, minhas irmãs e eu vivíamos intrigadas com manchas azuis que surgiam na "pele" de borracha das nossas Susies e Barbies. Nem os Falcons, os maridos das bonecas — ainda não existiam Kens no Brasil — escapavam. Com toda a autoridade conferida pelo posto de mais velha, Karla, então, diagnosticou: "É a doença azul". Aceitamos, embora continuássemos sem saber o que era a enfermidade.

Naquela época, os primeiros anos da década de 1980, uma doença que também deixava manchas na pele intrigava o mundo. Era a Aids. Nós, crianças, acompanhávamos as notícias na televisão, que geralmente vinham sem filtro. Um dia, apareceu a imagem de um jovem com o corpo muito magro, coberto de hematomas. O rosto era uma caveira descarnada. Os olhos tristes saltavam das órbitas. Aquela doença azul estava chacinando homens e ninguém sabia o que fazer. 

Falava-se em um mal de "depravados". "Peste-gay já apavora São Paulo", anunciou o Notícias Populares. "Povo de Sidney caça os gays por temor ao (sic) Aids", noticiou O Dia. Já O Globo, em uma matéria sobre o posicionamento do governo, alertou: "Saúde não se definiu sobre o 'câncer gay'". Na inocência infantil, chegamos a pensar se a doença azul não era, na verdade, a Aids. Mas nossas bonecas não eram homens. Nem gays.

Mais de 40 anos e uma pandemia de covid depois, fomos apresentados à mpox. Na verdade, desde a década de 1950 a doença é conhecida, mas nós, das Américas, nunca tínhamos ouvido falar. Nem os europeus ou os asiáticos. Como toda enfermidade endêmica da África, foi esquecida, ignorada, negligenciada. E só virou notícia quando, em 2022, um morador de Londres tornou-se o primeiro caso da enfermidade fora do continente africano. 

Ainda sob a sombra do coronavírus, o mundo temeu reviver o pesadelo de 2020. Aprendemos que as principais vítimas, embora não únicas, eram homens que fazem sexo com homens. Rapidamente, foram tomadas medidas de prevenção — diferentemente da covid, já havia uma vacina, a mesma da erradicada varíola — e de contenção. A emergência global, decretada pela OMS, foi suspensa menos de um ano depois. 

Não passou de um susto, pensamos, e viramos as costas, novamente, ao continente africano, onde o vírus mpox continuou fazendo o que esse tipo de microrganismo faz de melhor: adquirindo mutações. No surto da variante 1b, atualmente restrito a 16 países da África (além de um caso na Suíça e outro na Tailândia), uma das características é que as principais vítimas são crianças. Entre elas, a letalidade é cinco vezes maior do que o esperado.

Em entrevista ao Correio, o doutor em medicina tropical e professor de Saúde Pública da Fiocruz Amazônia Vanderson Sampaio foi questionado se a mpox seria a nova covid. "Não, mas posso compará-la com a epidemia de HIV". O especialista lembrou que, assim como a Aids, a doença tem origem na África, foi associada a um tipo de comportamento sexual e estigmatizada. "Ali nasceu a negligência, e deu no que deu", disse, sobre o HIV.

Em 2024, não há motivos para acreditar que uma doença infecciosa não seja "problema nosso", não importa o local em que  surgiu e o perfil do paciente. A Aids, por exemplo, apesar do tratamento bem-sucedido, matou 630 mil pessoas no ano passado, incluindo crianças, adultos, idosos, homens e mulheres. De todas as nacionalidades e orientações sexuais. 

Ao contrário da doença azul dos meus bonecos, que até hoje continua um mistério, há conhecimento suficiente no mundo para evitar que a mpox e outras doenças infecciosas sejam a "nova Aids". Negligenciá-las não é opção.

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