Francisco Aires Afonso Filho*
Em 2023, este autor pisou pela primeira vez no continente africano, especificamente em Angola, nação localizada no centro-africano. Pisar naquele solo ancestral foi ter a sensação de um retorno para casa, já que o mote da viagem era a afirmação e o reconhecimento da autoidentidade cultivada no candomblé angola-kongo e herdada por gerações ancestrais, por meio do processo iniciático, que manteve os conceitos civilizatórios e saberes dos povos vítimas do holocausto escravagista.
Ao colocar sua cabeça na terra e bater as palmas tradicionais para saudar a ancestralidade daquele local, refizeram-se o vínculo e a sintonia com tudo que aquele chão significava e iniciou-se o processo de busca e reconhecimento geográfico, linguístico, transcendente, alimentar e cultural. Essa reaproximação de identidades — forjadas nas mesmas bases, porém, com grande distância, da largura de um oceano — trouxe surpresas magníficas, como, por exemplo, não se sentir estranho nem perdido em locais e comunidades ainda não visitados nesta existência, ao saber o que tinha depois de uma curva ou de uma montanha e se sentir em casa em locais e estruturas sociais como se sempre tivesse vivido ali.
Mas também trouxe estranhamentos, como se eu, ilusoriamente, como uma saudade na alma dos tempos de antes de nascer, esperasse algo que não tivesse sofrido o peso da colonização europeia e religiosa impostas aos povos e estruturas sociais daquela terra. Como se fosse uma expectativa de que nada tivesse mudado naquele chão desde o momento de ruptura das estruturas tradicionais. Aquela saudade de querer encontrar uma realidade cristalizada no tempo, uma fotografia de um território que existia até o momento da invasão e escravização do seu povo.
O peso da colonização é real em todos os aspectos da vida em Angola e nos povos que a compõem, mas não foi capaz de desfigurar suas identidades por completo. Assim como a colonização no território que hoje chamamos Brasil foi implacável com nossos povos originários, lá também foi. Mas, mesmo com todo o peso, observa-se ainda muito de cada povo, revelando-se na resistência e no refazimento ancestral de pertencimento.
No Brasil, costumes básicos e comuns, adotados como identidade brasileira, são, na verdade, herança dos nossos povos originários e africanos. Em Angola, além de muitos costumes, especialmente na alimentação, no comportamento com as pessoas mais velhas, na luta para manter as línguas e costumes tradicionais, busca-se manter as identidades ancestrais, mesmo fragmentadas, e tudo perpassado pelo Cristianismo, como traço principal do colonizador.
O desafio de quem vai à África, especialmente se não tem letramento afro, ancestral, racial e sem o mínimo de compreensão da violência dos processos colonizadores, é conseguir desviar-se do tentador olhar "exótico", especialmente nas questões culturais, morais e comportamentais.
Manter as identidades, ou pelo menos ser nelas referenciadas, não exige, ou não tem como premissa, que Angola não seja um país moderno. Pelo contrário, Angola oferece todas as comodidades e confortos encontrados nas grandes metrópoles, com uma boa cobertura de internet, mas com os desafios normais de uma nação que é recente, diante do pouco tempo de independência da dominação portuguesa e das estruturas deixadas pela colonização, ainda com muita força.
Como descrito no livro De volta para casa, uma viagem a Angola, lançado por este autor em 2024, tanto no Brasil quanto em Luanda, a primeira viagem foi de descobertas, vivências intensas e, acima de tudo, um autorreconhecimento. Conhecer e vivenciar locais que são muito significativos para nossas tradições afros na diáspora, como Luanda, Mbanza Kongo, na província do Zaire, Malange, Huambo e tantos outros reflete que toda a resistência da nossa ancestralidade foi ressignificada em nossas tradições afro-brasileiras, que, por equívocos e necessidade de sobrevivência, foram associadas só à religiosidade.
Porém, é muito mais do que uma religião, são conceitos de vida de povos que nos constituem como nação brasileira e que são basilares para a história da própria humanidade. Esse reencontro com a Terra-mãe foi salutar para reforçar os conceitos afros de pertencimento. Tanto culturais quanto civilizatórios, linguísticos, alimentares, transcendentes e ancestrais.
Tata Nganga Ngunzetala, graduado em teologia e pedagogia, pós-graduado em direito administrativo disciplinar