Artigo

Amor sem separação

O verdadeiro amor não pode ser produto do pensamento, sentimentos ou desejos, uma vez que estão neles a origem do senso ilusório de separatividade

Coração: A origem do símbolo do coração é um mistério, mas acredita-se que ele tenha sido encontrado primeiro em artefatos da Europa, como cartas de baralho e poemas de amor.  -  (crédito: Clker-Free-Vector-Images por Pixabay)
Coração: A origem do símbolo do coração é um mistério, mas acredita-se que ele tenha sido encontrado primeiro em artefatos da Europa, como cartas de baralho e poemas de amor. - (crédito: Clker-Free-Vector-Images por Pixabay)

Por ENRIQUE R. ARGANARAZ*

Se fala muito de amor, amo minha família, amigos, meu país, meu cachorro, Deus..., mas não gosto do meu vizinho, colega, aquele que é de outro país, outra etnia, orientação política, sexual, religiosa... De fato, o amor é uma palavra carregada e corrompida por ideias, projeções mentais, padrões e códigos. Isso nos leva às seguintes questões: será que isso é amor? O amor é exclusivo e pessoal? O amor é sentimento, emoção? O amor é prazer e desejo? Pode o amor ser dividido em sagrado e profano? Portanto, torna-se prioritário examinarmos e entender isso chamado de amor. Para tal, devemos primeiramente nos libertar de todas as crenças e dogmas sustentados através dos séculos, sobre o que o amor deve ou não deve ser, ou a quem amar ou não amar.

Para nos desvencilharmos dessa parafernália de conceitos sobre o amor, podemos começar identificando o que ele não é. Para a grande maioria, o amor envolve sentimentos e emoções, como desejo e prazer, mas essa ideia tem profundas falhas. Prazeres e emoções, por derivarem dos sentidos, são incompletos e impermanentes, e, por outro lado, geram apego-dependência, ansiedade, sofrimento, podendo levar ao ódio e até à violência. Assim, a maioria dos relacionamentos são estabelecidos na base de uma troca utilitária. Enquanto as necessidades, das mais básicas até as mais sutis, das físicas e sociais até as emocionais psicológicas sejam preenchidas, ama-se; mas, tão logo essas necessidades deixem de ser satisfeitas, deixa-se de amar e, às vezes, passa-se até a odiar. 

Nessa visão contemporânea e utilitarista dos relacionamentos, há apenas antagonismo e separação e, certamente, não tem nada a ver com amor. Por outro lado, no estado de pertencer, depender psicologicamente do outro, existe ansiedade, medo, ciúme e culpa e, enquanto exista medo, não poderá existir amor. Certamente, essa visão distorcida dos relacionamentos e do próprio amor é uma das principais causas de tanta desigualdade e violência, vestida de amor. Sendo assim, torna-se prioritário identificar a principal causa dessa visão distorcida do amor, essa causa é a ideia, a crença da separatividade.

Isso nos conduz à seguinte questão, estamos realmente separados das pessoas e do mundo? Embora essa pergunta pareça sem sentido, um tanto quanto desconcertante e contra intuitiva, já que a nossa percepção nos indica que obviamente estamos separados de tudo e de todos, uma análise mais detalhada sobre o mecanismo de nossas percepções pode levar a uma conclusão diferente.

Embora os objetos pareçam estar separados de nós, apenas as propriedades deles são detectadas via órgãos dos sentidos, mas, de fato, nenhum dos órgãos dos sentidos percebe o objeto realmente, apenas transmitem sinais — impulsos referentes a cada propriedade do objeto e são "decodificados, filtrados e interpretados" por uma região do cérebro associada a cada órgão sensorial e, assim, "criados" na mente. Por exemplo, a visão detecta a cor e a forma, o tato, a temperatura e a textura, e a mente interpreta essas informações e "assigna" um nome, forma e propriedade, de modo que úmido, frio e azul se tornam "água", e quente, amarelo e tremeluzente se tornam "fogo". 

Assim, os objetos são apenas interpretações mentais e, consequentemente, a localização deles não é "lá fora", mas na própria mente. Essa simples análise nos conduz a uma visão contraintuitiva da chamada "realidade" e nos mostra que a visão de aparente separatividade é construída pela mente e só existe nela, agindo como um véu que nos leva a ver a realidade por meio de uma lente mental distorcida por preconceitos, julgamentos e interpretações originadas no passado, no velho. 

Sendo assim, o verdadeiro amor não pode ser produto do pensamento, sentimentos ou desejos, uma vez que estão neles a origem do senso ilusório de separatividade. Portanto, só sem esses pensamentos, sentimentos e desejos de separação, ou seja, sem esse senso ilusório de separatividade que cria todos esses estados contraditórios, estaremos livres para vivenciar o verdadeiro amor, um amor sem separação, onde não exista o outro e em completa união com tudo. Só nesse estado de total liberdade, do outro e principalmente de nós, existirá amor verdadeiro.

* ENRIQUE R. ARGANARAZ é Professor do Departamento de Farmácia da Faculdade de Ciências da Saúde Universidade de Brasília (UnB)

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postado em 30/09/2024 06:00 / atualizado em 30/09/2024 06:00
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