Sorria: você não vai morrer

Para muitos de nós, aquela morte dolorida e horrenda, tão temida, foi definitivamente cancelada Na nova ordem, uma parcela considerável continuará viva e ativa, lúcida, lúdica e lúbrica ainda por muitos anos

Não levar uma vida sedentária pode ser mais benéfico para a longevidade do que vantagens genéticas  -  (crédito: Viktor Drachev/AFP)
Não levar uma vida sedentária pode ser mais benéfico para a longevidade do que vantagens genéticas - (crédito: Viktor Drachev/AFP)

Roberto Muggiati — Jornalista, escritor e saxofonista

O homem nasce agraciado com uma única certeza: a de que vai morrer. Só não sabe quando, nem como. Nossa reação a essa fatalidade é pessoal e intransferível. A maioria, logo arrastada pelas engrenagens sociais, deixa de lado a ideia da morte, já que ela é inevitável e — otimistamente — remota. Em casos extremos, há os obcecados. Destaco o sujeito que, aos 20 anos, estimou que poderia viver mais 60 — ou seja, 1.684.800.000 segundos — e iniciou a contagem regressiva para a morte: 1.684.799.999, 1.684.799.998, 1.684.799.997…Uma parábola digna de Borges ou de Paul Auster.

Com a vida mais ou menos assentada depois dos 40 anos, tive pela primeira vez tempo ocioso para pensar na morte, tomado por aquele sentimento que Shakespeare descreveu no monólogo de Hamlet: "O medo de algo depois da morte/esse país desconhecido de cujo território/nenhum viajante retornou". Em noites de insônia, eu vislumbrava meu epitáfio incompleto: Roberto Muggiati • 1937 - ????. Ao primeiro segundo do ano 2000, suspirei aliviado. Agora, a data fecharia com dois-mil-e-qualquer-coisa, não importava mais, eu estava no lucro. 

Escolhi até uma frase para a lápide, inspirado no meu poeta de cabeceira, Cole Porter: "It was great fun, but it was just one of those things". Resumindo: a vida foi divertida, mas banal. O alto custo do metro quadrado nos cemitérios — alguns túmulos cariocas são mais caros do que um duplex na orla de Ipanema — me levaram a optar pela cremação. Como a urna com as cinzas ostentaria um rótulo, recorri novamente a Cole Porter: Too Darn Hot (danado de quente). 

Agora, o que está em voga é a compostagem: em vez dos ossos e das cinzas estéreis, nossos restos mortais servirão pelo menos como fertilizante. O tambor contendo meus despojos será carimbado com uma frase da única parceria assinada por Cole Porter, Don't fence me in: "Oh, gimme land, lots of land under starry skies above, don't fence me in" (Deem-me terra, muita terra, debaixo de céus estrelados, não me encurralem). 

Enfim, a boa notícia é esta: para muitos de nós, aquela morte dolorida e horrenda, tão temida, foi definitivamente cancelada. Não mais situações clichê, como "lutava há anos contra um câncer", "paraplégico ou tetraplégico por sequelas de um AVC", "condição estável mantida por aparelhos". Na nova ordem, uma parcela considerável continuará viva e ativa, lúcida, lúdica e lúbrica ainda por muitos anos. 

Cito alguns dos contemplados: Hermeto Pascoal, 88 anos, com sua música telúrica; o maestro João Carlos Martins, 84; os jornalistas Mino Carta, 91, Zuenir Ventura, 93, e Wilson Figueiredo, 100 anos; o escritor e educador Arnaldo Niskier, 89; o filólogo Evanildo Bechara, 96; os atores Fernanda Montenegro, 94, e Othon Bastos, 91; o cineasta e poeta Sylvio Back, 87; os pintores Anna Bella Geiger, 91, e Fernando Veloso, 94; a poeta Adélia Prado, 89; e o contista Dalton Trevisan, 99. 

Ouso incluir-me nessa turma bem-aventurada. Aos 87 anos, sinto-me tão saudável como aos 20 anos, com um bônus: a serenidade e a sabedoria trazidas pelo tempo. Sem alimentar ilusões, sei que um belo dia vou apagar, como uma vela que se extingue, uma bateria que descarrega. Na moita, espero, sem dor, como quem não quer nada, dormindo talvez, levado pela espuma dos dias, adentrarei suavemente aquela noite amiga.

 

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postado em 23/09/2024 06:00
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