Há um tempo que a vida sugere (ou melhor, escancara) a necessidade de fazermos uma repactuação das dívidas com o universo. E isso inclui os acertos de contas que temos de fazer com nós mesmos. Sabe aqueles momentos em que começamos a examinar o que poderíamos ter feito diferente em circunstâncias mais favoráveis?
Os bobos, às vezes, reduzem esse mergulho. Classificam, de forma simplória, apenas o resultado da análise de atos pregressos: arrependimento, culpa, mágoa, certeza, dever cumprido, "faria de novo" e por aí vai. Procuram palavras e expressões para denominar sentimentos que vêm com esse exercício de autoconhecimento. Gosto de interpretar como oportunidade.
Olhar para o passado e mesmo para o presente, entender o que cada coisinha significou, se perdoar e fazer o que for preciso para deixar que nossos atos ocupem seus devidos lugares de importância e desimportância. Algumas vezes essa reflexão exige pensar "o que eu posso fazer para consertar isso aqui?" ou "como faz para parar de doer?".
Vou dar um exemplo pessoal e difícil de ser compartilhado. Eu considero o maior de todos os erros da minha vida ter ido a Goiânia, em um mês seco de setembro como este, para fazer um aborto. Tinha 20 e poucos anos, morava sozinha, ganhava o meu dinheiro. O pai da criança me pediu para não seguir em frente, esteve comigo todo tempo. Ainda assim, eu achei que, naquele momento, era o que precisava ser feito.
Hoje, quando me viro do avesso nos meus exercícios de revisão da vida, sinto a enorme necessidade de admitir publicamente que foi um erro. Confesso que o que me impediu de fazê-lo até hoje foi a possibilidade dessa confissão ser mal interpretada e confundida com um discurso contrário ao direito das mulheres sobre o próprio corpo, ao aborto legal e à continuidade de políticas públicas que tratem o aborto como uma questão de saúde pública. É o que defendo e o que entendo como o certo a ser feito.
Minha confissão nada tem a ver com religião e em nada compactua com discursos toscos de políticos oportunistas e reacionários, nem fanáticos de qualquer tipo. Tem a ver com o direito de escolha e o direito supremo à revisão dos nossos atos. Falar abertamente sobre minha escolha individual e a consciência que hoje tenho sobre a minha decisão é uma forma de reconhecimento e libertação.
Tenho esperança de que liberte também o anjo que ainda ficou morando aqui dentro e dê a ele outro destino que não seja uma gaiola no meu peito. Ao longo dos anos, eu passei a senti-lo perto demais; o batizei com o nome de Ariel, meu anjo, passei a amá-lo incondicionalmente, como a meus outros filhos. Ariel Dubeux Guedes tem me ensinado, intimamente, a não me torturar. Obrigada, meu filho! Voe, livremente, em paz e na luz. Sua missão foi cumprida.
Escrevi esse artigo ainda sob o sol escaldante, o ar irrespirável e o tempo seco de mais um setembro tortuoso. Enquanto o fogo ardia na mata, eu pensava que talvez precisasse de um abafador para as dores da alma também. Decidi soltar esse grito de dor. De alguma forma, me liberto.
Enquanto as florestas ardem Brasil adentro, governos brigando, num blablablá insuportável, provando que a fogueira de vaidades às vezes é maior que o fogo que destrói florestas, eu penso o que faz da nossa realidade algo insalubre. Parte disso está dentro de nós; parte está fora.
A negação em enxergar o quanto estamos errando atrasa esse nosso acerto de contas com o universo. O fogo devorou muita vida na natureza e entristeceu muita gente pelo que realmente importa: os animais, as plantas, a herança de destruição. Isso importa.
Uma amiga me contou da casinha em reforma de sua sobrinha atingida pelo fogo. Isso também importa. Política passa; economia passa; crise passa. Mas tem coisas que ficam. E não precisamos arder em chamas durante longos anos para entender tudo o que importa, seja fora de nós, seja dentro. Quando o próximo setembro chegar, talvez eu já não sinta aquela dor silenciosa, agora compartilhada. Espero também que o ar esteja mais puro. A gente aprende todo dia com o universo. Precisamos ouvi-lo mais.
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