Meio ambiente

Não há Cerrado sem água

Cada flor e fruto do Cerrado estão repletos de água. É também essa quantidade de água que explica a notável diversidade de fauna do Cerrado, incluindo muitos animais sensíveis à sua ausência, como anfíbios

Dia do Cerrado 2024, queimada, desmatamento e redução da disponibilidade de água ameaçam o ecossistema. -  (crédito:  Reprodução)
Dia do Cerrado 2024, queimada, desmatamento e redução da disponibilidade de água ameaçam o ecossistema. - (crédito: Reprodução)

REUBER ALBUQUERQUE BRANDÃO — Departamento de Engenharia Florestal, Universidade de Brasília (UnB), membro da Rede Biota Cerrado e da Rede de Especialistas emConservação da Natureza da Fundação Grupo Boticário

Quando falamos sobre "biomas" estamos nos referindo a um espaço biofísico específico. Imagine que cada estação climática no planeta seja posicionada em um gráfico onde os eixos são a temperatura anual média e a pluviosidade anual média. Independentemente se a estação meteorológica está em Manaus ou no Congo, seus dados irão posicionar essas estações muito proximamente. O mesmo ocorrerá com as estações localizadas em savanas da África, da Austrália ou mesmo do Brasil Central. As savanas vão se agrupar nesse gráfico justamente porque existe um espaço climático que caracteriza as savanas.

Mas uma coisa interessante sobre o Cerrado resta claro quando comparamos os seus dados climáticos com aqueles gerados na África ou na Austrália. O Cerrado se destaca por ser a savana mais quente e chuvosa do mundo. Nenhuma outra savana do mundo tem temperaturas tão amenas no inverno e tanta água caindo no solo com a chegada da estação chuvosa. Apesar de fortemente concentrada em poucos meses, a pluviosidade do Cerrado se compara à pluviosidade observada em regiões do leste da Amazônia (onde a chuva é mais bem distribuída ao longo do ano).

Devido a essa notável pluviosidade, há autores que se referem ao Cerrado como uma savana úmida hipersazonal. De fato, há (ou ao menos, havia) muita água nas paisagens do Cerrado. É justamente essa água que mantém o vigor das grandes árvores dos cerrados, a beleza das longas veredas e seus majestosos buritis, o mistério das matas paludosas e o verdor das matas de galeria. Cada flor e fruto do Cerrado estão repletos de água. É também essa quantidade de água que explica a notável diversidade de fauna do Cerrado, incluindo muitos animais sensíveis à sua ausência, como anfíbios. Há mais anfíbios na Chapada dos Veadeiros que em toda a Europa, por exemplo.

No entanto, de forma pouco intuitiva, muita gente ainda pensa no Cerrado como um ambiente árido, com a repetição de pensamentos ultrapassados de "paisagem monótona de árvores tortuosas e secas". Há muita água no Cerrado. Nos rios, nas nascentes, nas veredas, nos aquíferos. E, justamente devido a essa pluviosidade e à água carinhosamente acumulada no solo, que o Cerrado é conhecido como "berço das águas" do Brasil. Muitos pensam que represas são os mais importantes reservatórios de água, mas a verdade é que o grande depósito de água do Cerrado é o solo. Cada gota de água que cai do céu escorre ao longo das plantas e penetra no chão através da rede de profundas raízes que caracteriza a "floresta invertida" do Cerrado. E essa água ocupa os espaços existentes entre as partículas do solo, formando os aquíferos que alimentam nascentes, córregos, veredas e rios. O solo absorve e aconchega a água.

Mas essa água, os solos profundos, os terrenos antigos e de relevo suave, permitiram, após ajustes necessários, o desenvolvimento assombroso do agronegócio no Cerrado. E não há produção sem água. Muita água. Um pivô central de irrigação, com lança de 150 metros, formando um círculo aproximado de 70 hectares, plantado com oleaginosa anual, consome por ano o mesmo que 4 mil famílias. Cada pivô central consome mais água que uma superquadra de Brasília ou uma pequena cidade. Há 6.700 pivôs centrais no Cerrado hoje. E o número está aumentando.

A demanda de água para a produção agrícola, associada à notável diminuição da pluviosidade e aumento da temperatura decorrentes das mudanças climáticas contemporâneas, têm reduzido fortemente a quantidade de água no Cerrado, com impactos claros na vazão dos cursos de água. Essa redução da força dos rios acaba reduzindo também a capacidade de geração de energia das hidroelétricas, tornando a energia mais cara.

No entanto, mais do que isso, há notável diminuição da chamada superfície de água no Cerrado. Estima-se que o Cerrado perdeu mais da metade da superfície de água (lagos, rios, veredas) nos últimos 65 anos. A estação de chuvas diminuiu também, e a tendência é que menos água haverá no futuro. Já se passaram uns 30 anos desde quando comecei a estudar anfíbios no Cerrado. Tenho anotações em minhas cadernetas de campo com coros de umas 20 espécies de sapos em plena atividade em fins de setembro, em brejos que não existem mais. Vi lagoas, veredas, poças, nascentes desaparecerem nesses poucos anos percorrendo diferentes regiões do Cerrado. Vi ecossistemas que meus filhos jamais verão.

Hoje, 11 de setembro, Dia do Cerrado, observo um opressivo céu cor de chumbo. Fuligem cai como flocos de neve do apocalipse. Há fogo e fumaça. Na garganta há engasgos, mas olhos secos não permitem mais a umidade. Falam de fogo. Mas não é fogo que define o Cerrado, mas a água. Onde está a água?

Pensando novamente na distribuição dos biomas da terra em relação à temperatura e à pluviosidade das estações climáticas, lembro que há claros limites biofísicos para a existência da vegetação do nosso planeta. Lembro que desertos (e não savanas) ocupam as porções continentais interioranas e na mesma latitude do Cerrado em outras partes do mundo. Lembro que a água da Amazônia, também em chamas, não viaja mais em rios voadores, agora transformados em rios de fumaça. O que aguarda o Cerrado depois da próxima curva.

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postado em 11/09/2024 06:00
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