Artigo

Sobre despedidas

Em tempos de indiferença, ódio e solidão, até mesmo uma palavra amiga soa como um verdadeiro bálsamo a quem tanto necessita. E ela era muito hábil em estender as mãos, oferecer um conselho e se doar

Fita Luto -  (crédito: Ed. de arte)
Fita Luto - (crédito: Ed. de arte)

"Se eu soubesse que seria a última vez que a veria, teria agarrado o tempo e parado o relógio. Teria decidido ficar mais, embalado por sua voz na conversa à mesa farta de sonhos e de amor. Teria lhe dado um abraço sem fim, como se não quisesse perdê-la de mim. Teria lhe dito mais vezes que a amava, teria lhe lembrado do passado para evitar o futuro. Se eu soubesse..."

Escrevi essas palavras em meio ao luto. Na semana passada, eu me despedi de minha avó materna. Tive o privilégio de partilhar quase 49 de seus 91 anos de existência. Sou saudade, mas também gratidão. Despedidas doem e são professoras. Ensinam que precisamos viver o hoje com a incerteza do amanhã. Não deixar nenhuma aresta solta. Amar com intensidade e não ter vergonha de expressar isso. Vivemos em uma redoma, na luta constante por bens, quando não levamos nada conosco.

Todos nós temos um mesmo destino. A morte é inexorável. Ainda assim, as pessoas teimam em se diferenciar umas das outras. No alto de seus egos maquiados, alguns "ricos" menosprezam os mais pobres como classe de subalternos. O racismo, a homofobia e a misoginia correm soltos. Quem os pratica apenas se afunda num falso sentimento de superioridade. Despreza o outro pela cor da pele, deseja controlar a "opção sexual" alheia ou se julga o máximo apenas por ser "homem". No fim das contas, a morte chega para todos. Aqueles que carregam consigo a empáfia, a presunção, o egocentrismo, a antipatia... Talvez, ao morrerem, apenas despertarão menos saudade e menos dor em quem fica.

A vida é por demais efêmera. Cabe a nós deixarmos uma boa impressão nesse grande picadeiro. Ao apagar das luzes, sairmos sob uma salva de palmas, com a certeza de que semeamos o bem, plantamos algo positivo. Minha avó querida sempre foi uma pessoa generosa. Mesmo ante tantas limitações, procurou ajudar aqueles que necessitavam. No fundo, a vida deveria ser isso: um estender as mãos ao próximo. Em sua despedida, soubemos de várias pessoas que receberam algum tipo de auxílio dela. Em tempos de indiferença, ódio e solidão, até mesmo uma palavra amiga soa como um verdadeiro bálsamo a quem tanto necessita. E ela era muito hábil em estender as mãos, oferecer um conselho e se doar.

Cheguei a pensar em escrever sobre a Venezuela ou sobre o aniversário de 23 anos dos atentados de 11 de setembro de 2001. No fundo, tudo está, de certa forma, interligado: trata-se de escolhas, de seguir o caminho do bem ou de trilhar as sendas do mal. De espalhar harmonia e amor ou semear danos, luto e dor. De socorrer o próximo ou de subjugá-lo e aniquilar sonhos. Espero que cada um de nós possa tratar o outro na plenitude do momento, na certeza da incerteza, na inconstância da vida. Minha avó era puro sorriso e alegria de viver. Espero levar em meu peito pelo menos parte de sua índole, de seu caráter e de sua retidão. Porque sei que, de uma forma ou de outra, ela estará em meu peito. Por todo o sempre.

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postado em 11/09/2024 06:00
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