Opinião

Navegando pela inclusão e equidade na Década do Oceano

A ciência que procura compreender e proteger os ambientes marinhos e as comunidades que deles dependem tem sido historicamente moldada por um estreito leque de vozes

PRI-0709-OPINI -  (crédito: Maurenilson Freire)
PRI-0709-OPINI - (crédito: Maurenilson Freire)

MALU NUNES — Diretora executiva da Fundação Grupo Boticário e membro da Rede de Especialistas em Conservação da Natureza e JULIAN BARBIÈRE — Coordenador Global da Década do Oceano e chefe a seção de Política Marinha e Coordenação Regional da Unesco — COI

Se o mar é constantemente usado nas artes como metáfora para descrever os complexos sentimentos humanos, o oceano pode ser visto como um símbolo de diversidade e inclusão. Esse gigante abriga a maior biodiversidade do planeta, é responsável pela regulação do clima, acolhe culturas tradicionais ao longo das suas costas e sustenta atividades econômicas vitais. Conecta continentes, atuando como um elo natural que une as nações.

Contudo, a situação dos vastos e intrincados ecossistemas do oceano está mais crítica que nunca para a saúde do nosso planeta e para o nosso futuro. Face aos crescentes desafios ambientais, a ciência que procura compreender e proteger os ambientes marinhos e as comunidades que deles dependem tem sido historicamente moldada por um estreito leque de vozes.

A Década da Ciência Oceânica para o Desenvolvimento Sustentável da ONU para 2021-2030 (Década do Oceano), liderada pela Comissão Oceanográfica Intergovernamental da Unesco (Unesco-COI), tem o ambicioso objetivo de "catalisar soluções transformadoras da ciência oceânica para o desenvolvimento sustentável". Mas a pesquisa no ambiente marinho enfrenta obstáculos consideráveis. Disparidades históricas e crescentes no acesso a recursos financeiros e infraestrutura científica limitam a capacidade de muitos países em participar plenamente da ciência oceânica. A escassez de financiamento, a falta de embarcações e equipamentos adequados e a dificuldade de acesso a áreas remotas são barreiras significativas. 

O Relatório Global da Ciência Oceânica 2020 da Unesco-COI revela disparidades gritantes na produção da ciência oceânica. De acordo com a publicação, as mulheres têm participação inferior a 40% nos trabalhos científicos globais sobre oceano, número que cai significativamente em cargos de liderança. Além disso, a ciência oceânica está predominantemente concentrada nos países desenvolvidos, com a grande maioria dos centros de pesquisa localizados na Europa e na América do Norte.

O emblemático Relatório sobre o Estado do Oceano 2024 destaca ainda mais essas desigualdades trazendo que comunidades indígenas e locais, apesar do seu conhecimento profundo e tradicional sobre os ecossistemas marinhos, seguem sub-representadas diante da ciência oceânica. Essa exclusão não só prejudica a inovação científica, mas também enfraquece nossa capacidade coletiva de responder aos desafios relacionados ao oceano com estratégias culturalmente sensíveis e eficazes.

Segundo as pesquisadoras brasileiras Jana Menegassi del Favero e Mariana Martins de Andrade, em artigo na revista Ciência e Cultura, da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), para transformar essa realidade, é preciso adotar uma abordagem que priorize a equidade, implementando uma governança inclusiva e um planejamento de longo prazo que considere a justiça geracional. 

Promover maior participação das mulheres é um exemplo do que podemos fazer para garantir a diversidade e a inclusão na cultura oceânica. Quando tratamos de algumas das principais atividades econômicas no mar — geração de energia, exploração mineral, pesca e aquicultura, construção e reparação naval —, vemos novamente ambientes majoritariamente masculinos. 

No que diz respeito à pesca, embora a Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO) estime que 79% dos pescadores no mundo sejam homens, no Brasil, levantamento recente do governo federal mostrou que 49% são mulheres. Em cinco estados, elas são maioria (Maranhão, Pernambuco, Sergipe, Bahia e Alagoas). 

Vale destacar também que, na costa brasileira, que se estende por 8.500 quilômetros, há uma rica diversidade de comunidades pesqueiras tradicionais, incluindo indígenas, quilombolas, marisqueiros e catadores de caranguejo.

Se quisermos alcançar um oceano mais saudável e resiliente até 2030 e, mais além, sem deixar ninguém para trás, temos de continuar identificando e removendo sistematicamente barreiras à diversidade geracional, geográfica, de gênero e de conhecimento. 

Embora tenham sido feitos bons progressos desde o lançamento da Década, em 2021, são necessários esforços adicionais. Todas as partes interessadas — cientistas, tomadores de decisão, comunidades costeiras, indústria, setor privado e sociedade civil — devem estar ativamente envolvidas na definição e implementação de soluções.

Nesse espírito de colaboração, representantes de cerca de 30 fundações globais se reuniram no Rio de Janeiro, nesta semana, sob as premissas da Década do Oceano, para definir ações práticas para potencializar recursos a favor da saúde oceânica, tapando lacunas de financiamento, apoiando vozes sub-representadas e promovendo soluções equitativas para a conservação do oceano. Somente adotando uma abordagem verdadeiramente inclusiva poderemos aproveitar a experiência coletiva e o compromisso necessários para criar um oceano próspero e resiliente que beneficie a todos. 

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postado em 07/09/2024 06:00
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