Cristovam Buarque*
A contribuição como analista de problemas herdados e formulador de estratégias coloca Delfim Netto entre os mais importantes economistas e mais influentes políticos de nossa história. Nos dias seguintes à sua morte, foi louvado pela inteligência e pelo papel no salto do PIB brasileiro, na década de 1970; também pela versatilidade em apoiar os militares em um momento e, em outro, ser o guru do PT. Assumiu-se que seu único pecado teria sido político, assinar o AI-5; mas seu grande pecado foi econômico, por ter procrastinado o pagamento das dívidas da economia com o povo e a nação do Brasil. Ele foi realizador de curto milagre econômico, não foi promotor das reformas estruturais de que o Brasil precisa.
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Apesar de sua competência, Delfim trabalhou com a mesma miopia dos economistas que buscam crescimento sem sustentabilidade nem justiça. No Correio Braziliense, no dia seguinte à morte de Delfim Netto, André Gustavo Stumpf lembrou a frase do ex-ministro "Dívida não se paga, administra-se", que caracteriza o pensamento econômico brasileiro. Essa visão tem sido usada para adiar o pagamento de dívidas que amarram o Brasil. Adotam medidas para reduzir a penúria, mas sem estratégias para superar a tragédia da pobreza e a vergonha da desigualdade. Ignoram que a educação de base com qualidade e equidade é o vetor fundamental tanto para o aumento da renda social quanto para sua distribuição. Criaram o real, mas não reduzimos, e até aumentamos, os gastos e a ineficiência do Estado. Mantemos a dívida da baixa produtividade, dando isenções e subsídios que, às vezes, agravam os gargalos e, há décadas, emperram nossa economia.
Delfim via a pobreza como falta de crescimento econômico, não como um dos impedimentos ao crescimento econômico. Ao dizer a famosa frase "É preciso fazer o bolo do PIB crescer, para depois dividi-lo", escondeu que a pobreza é hoje, como a escravidão foi no passado, um instrumento para promover o aumento do PIB, ao concentrar a renda e baixar salários como forma de criar demanda para produtos caros e forçar a poupança para induzir o crescimento no curto prazo.
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Ele e muitos economistas não perceberam que a superação da pobreza só se consegue pela acessibilidade de todos aos serviços sociais básicos, porque a renda criada pelo crescimento econômico não se distribui espontaneamente, nem seria capaz de permitir a compra de todos esses serviços no mercado. O ex-ministro tampouco viu que a permanência da pobreza leva ao apodrecimento moral do bolo do PIB, à instabilidade da democracia, além de limitar o crescimento no médio prazo devido à baixa produtividade da mão de obra; não percebeu que crescer sem distribuir não é apenas imoral, é também ineficiente e insustentável. Ele não viu que não é a falta de crescimento que provoca pobreza, é a pobreza que impede o crescimento sustentável.
Apesar de sua genialidade, Delfim e demais economistas "de direita" consideram que a baixa qualidade de nossa educação é consequência do subdesenvolvimento, e não que o subdesenvolvimento é consequência da baixa qualidade e da desigualdade como a educação é oferecida; por sua vez, os economistas "de esquerda" consideram que a educação de base só será bem distribuída quando a renda for bem distribuída, não que a boa distribuição de renda depende do acesso isonômico de toda população à educação de qualidade, independentemente da classe social da criança.
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Foi a influência política de Delfim sobre os ditadores que levou o país ao milagre econômico com taxas de crescimento que nunca mais voltamos a ter, sem pagar e até agravando as dívidas social, fiscal e ecológica. Sua influência acadêmica formou uma geração de procrastinadores de dívidas, especialmente, com a educação. Por isso, nossos milagres se esgotaram rapidamente. Delfim foi o símbolo da genialidade de nossos economistas com táticas para administrar dívidas sem enfrentá-las; adiando os problemas sem construir um país eficiente, justo, rico, sustentável e democrático. Sob essa cegueira, ele foi um dos melhores: colocou nossa economia entre as maiores do mundo, mas fez do Brasil o que, já no início dos anos 1970, Edmar Bacha chamava de "Belíndia", injusta e insustentável.
Professor emérito da Universidade de Brasília (UnB)*