Artigo

Mesmo no mundo Matrix: Obrigado, soldado!

No mundo em que realidade e ficção se confundem e a sociedade, nas questões securitárias, ainda brinca de "marcha soldado, cabeça de papel", os verdadeiros soldados permanecem atentos. E merecem o nosso efusivo reconhecimento

Otávio Santana do Rêgo Barros*

"Marcha, soldado, cabeça de papel, quem não marchar direito vai preso pro quartel."  Essa é uma cantiga antiga, muito conhecida nas brincadeiras da minha infância. A garotada se juntava, arremedando militares em deslocamento, tentando marchar mais ou menos alinhada. Era difícil acertar o passo. A panela, que representava o bumbo, estava em péssimo estado, e a baqueta era um galho de árvore. O "comandante" gritava: "Um, dois". O restante respondia: "Três, quatro". 

O chapéu de papel de jornal compunha o uniforme do combatente mirim. Às vezes, um cabo de vassoura simulava um cavalo que todos queriam montar. Aquelas crianças transbordavam energia. Para elas, ser soldado era ter coragem, viver emoções, ser nobre, sem adjetivação. Muitas coisas mudaram nos folguedos infantis, mas esse interesse por coisas de quartel persiste nos pequeninos. 

Em casa, tenho exemplo nos meus netos. Soldadinhos de plástico Gulliver, forte apache com soldados usando chapéus de cowboys e miniaturas de carros de combate da Segunda Guerra Mundial são seus passatempos preferidos. No imaginário dos pequeninos, a missão é vencer o mal. É provável que o histórico familiar os tenha estimulado a imitar a profissão de soldado: o pai, a mãe, os avôs. Mas essas duas crianças não são exceções. Em outros lares, brinca-se da mesma forma.

Alfred de Vigny, em sua obra Servidão e grandeza militares (Bibliex, 1975), descreve a "nobreza sem adjetivação" em três histórias de soldados que dedicam suas vidas ao Estado, ao povo e aos companheiros de farda. O comandante de navio com seu apego doloroso às ordens e, ao mesmo tempo, compaixão extremada pelos mais fracos. O tenente da guarda que sofre a morte do ajudante de seu quartel devido ao rigor deste subordinado no cumprimento de seus afazeres funcionais. E o capitão com bengala de junco que tomava por virtudes a simplicidade, a discrição e a seriedade, atributos que, paradoxalmente, o fizeram estacionar no posto intermediário

Publicada em 1835, a obra explora aspectos anímicos e singulares associados à carreira de soldado que os distinguem do mundo de casaca: vida de submissão e disciplina, hierarquia rígida e isolamento do mundo civil, heroísmo e coragem, resignação e patriotismo. O ensaio é uma homenagem e, ao mesmo tempo, uma reflexão profunda sobre as tensões entre dever e liberdade, prestígio e sacrifício.

Caros leitores, acalentado pelo texto de Alfred de Vigny, o Exército Brasileiro comemora amanhã, 25 de agosto, o Dia do Soldado. A efeméride é um tributo ao mais admirado militar da força terrestre, Luís Alves de Lima e Silva, o Duque de Caxias. Se Vigny o tivesse conhecido, certamente se entusiasmaria com aquele homem, com seus exemplos, com seu legado, com sua firmeza de convicção e com sua nobreza de caráter. 

Caxias é uma das figuras mais emblemáticas da história militar e política do Brasil. Nascido em 25 de agosto de 1803, no Rio de Janeiro, muito cedo ingressou na caserna, destacando-se em vários momentos da evolução do país. Das guerras pela independência ao comando de tropas legalistas nos conflitos internos, culminando com a chefia das tropas aliadas na Guerra da Tríplice Aliança, Caxias — O Pacificador — liderou abraçado com as mais significativas virtudes militares. 

A nobreza de Caxias inspira. Outros soldados a carregam em seus alforjes junto com as rações e os fuzis. São muitos os capitães com bengala de junco, os comandantes de navio, os ajudantes de quartel em nosso Exército. Mas foi Caxias, repito, o maior desses cidadãos-soldados.

As crianças do início do texto, por serem inocentes, não sabem que suas liberdades dependem dos soldados que elas festejam, dos Caxias que se entregam em servidão. Mas elas são crianças!  O que não se compreende é uma parte madura da sociedade teimar em desconhecer o legado do Pacificador e de outros militares que protegeram e protegem o Brasil de antagonismos.

No mundo Matrix em que vivemos, onde realidade e ficção se confundem pela ingestão das pílulas azuis ou vermelhas (a verdade dolorosa ou a ignorância abençoada) e onde a sociedade, nas questões securitárias, ainda brinca de "marcha soldado, cabeça de papel", os verdadeiros soldados permanecem atentos.  E, por estarem atentos, merecem o nosso efusivo reconhecimento: Obrigado, soldado!

General da reserva, foi chefe do Centro de Comunicação do Exército*

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