Artigo

Existências negras: inspire que a luta depende de nós

Dores internas precisam ser ouvidas, inicialmente por nós, uma autoanálise que nos faça olhar para nossas dores, traumas, relacionamentos etc. Elas reverberam e transformam-se em lutas, bem sabemos

Mariana Almada* 

Vamos dar uma pausa, res-pi-re-mos e inspiremo-nos. Peito para fora, vamos lá, lutas e forças! Peito para dentro, fragilidades e forças! A cada evento, resistências negras! E, com eles, a discussão das nossas pautas, sobretudo as que nos custam caro — por serem fundamentais para o desenrolar dos racismos que nos afetam, o que evoca sentimentos, sensações prejudiciais, apontando sérios problemas de saúde mental.

Vamos fazer um recorte para reflexão das pessoas de luta. É sabido que os movimentos, como os sociais, antirracismo, feministas, no intuito de "combater o bom combate", naturalmente fazem com que as pessoas abram seus peitos para os enfrentamentos em busca de soluções plausíveis. Falamos aqui de todas as pessoas que colocam seus corpos, suas vozes, seus punhos cerrados à frente de manifestações, numa atitude de força e coragem em defesa de suas comunidades. É uma questão de tomada de consciência e duras críticas ao sistema que distancia, mata e massacra a população negra. Visto que seja assim, é de nosso entendimento que, ao fazer ecoar nossa história, reconhecimento e reparações, acirram nossa luta de peito pra fora.

O racismo tem seus disfarces. Pode vir sutil, voraz ou agressivo. Chega rasgando nossos peitos e punhos. Frente a questões, como enfrentamentos diários, passeatas, marchas, estamos constantemente fazendo ressoar nossos pensamentos, angústias, justiças e dores. O que realmente precisamos é de escutas sensíveis a essa causa, porque essa é uma questão de todas as pessoas e, como diz o jornalista e psicanalista Roberto Rodrigues, "se o racismo é uma questão social,... é preciso ouvir o que está além dos ruídos sociais."

O que "está além dos ruídos sociais" pensamos que possa estar subjetivamente dentro de nós! Aqui, entramos em outra luta, o que chamaremos de peito pra dentro. Junto às reflexões frente a esse termo, trazemos novamente o pensamento de Rodrigues: "O negro brasileiro é um negro único no mundo porque não se vê como um povo. Não foi educado para se ver como um povo. O negro brasileiro foi programado para sequer se ver como negro."

Sendo assim, dores internas precisam ser ouvidas, inicialmente por nós,  uma autoanálise que nos faça olhar para nossas dores, traumas, relacionamentos etc. Elas reverberam e transformam-se em lutas, bem sabemos. Por isso, o autocuidado.

Lembramos aqui a teoria freudiana em "recordar, repetir e elaborar", processos pelos quais passamos e que exigem um trabalho psíquico intenso, que, por vezes, implica em olhar para si e buscar respostas que, apenas nós, no "divã pessoal", podemos responder. Por isso, trazemos o olhar do que significa a luta por uma causa dentro ou fora de nós, significados que nos incomodam ou nos acomodam, nos fortalecem ou enfraquecem. Diz Freud: é "apenas através de sua própria experiência e infortúnios que uma pessoa se torna sagaz". Façamos assim com nossas lutas.

Vivemos desde sempre numa sociedade hegemonicamente branca, que nos torna invisíveis, inferiores, que nos pregam um protótipo de identidade, e, o pior, nos identificamos. Sobrevivemos e vivemos a um racismo perverso e por herança, em que os nossos, digo, a nossa ancestralidade negra, sofreu e que hoje para nós é um sinal, um símbolo de resistência proclamando ao mundo quem somos nós. E, mesmo assim, seguem as dores e marcas do racismo, como diz Silvio Almeida, "que se manifesta por meio de práticas conscientes ou inconscientes que culminam em desvantagens ou privilégios para indivíduos, a depender do grupo racial ao qual pertençam."

Junto ao Silvio, trazemos a fala de Audrey Lord quando diz que "cuidar de mim mesma não é autoindulgência, é uma autopreservação, e isso é um ato de guerra política". Em nome dos que se foram e dos que estão, incluamo-nos neste ato e lembremo-nos do autocuidado, para que tenhamos forças para além de nós. Res-pi-re-mos novamente, olhemos sempre dentro ao abraçar as lutas externas. Inspiremo-nos e levantemos as mãos em punhos erguidos. Digamos ao mundo a que viemos. Unamos-nos a todas as forças de Olorum, ancestral, Ubuntu às forças internas, para que nossas lutas sejam de cuidado, determinação e afirmação. Parafraseando Sater e Teixeira, é preciso causa para poder pulsar e coragem para florir! 

Professora, psicanalista e fotógrafa*

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