Vladimir Carvalho*
Primeiro conheci o Gougon e só depois Henrique Gonzaga Júnior, sendo ambos a mesma criatura plena de inquietude e talento, no início dos anos de 1970, no campus da Universidade de Brasília (UnB), então silenciado, mas não vencido, pela brutal repressão de que fora vítima em 1968.
O nome de Gougon circulava com destaque entre seus colegas — os da geração de ouro, que sentiram o bafejo das ideias e práxis de Anísio Teixeira e Darcy Ribeiro, geniais criadores de nossa universidade. Um grupo numeroso de alunos que se destacava pela sensibilidade e iniciativas — era a turma de Luis Carlos Ripper, que brilharia depois no teatro brasileiro; de Marlui Miranda, compondo e cantando e levando a tiracolo a irmã caçula, a hoje celebrada escritora, Ana Miranda; de Cildo Meireles, que ainda não era o artista plástico brasileiro mais cotado no mercado internacional; de Tizuka Yamasaki, com seu Gaijin debaixo do braço; de Áquila da Rocha Miranda, hoje consagrado como o pai da "geração 80"; de Hélio Doyle, então revelação do jornalismo; de Cidno Silveira, logo transformado em colaborador do mestre Niemeyer, e tantos outros, mas praticamente todos liderados no plano político pelo nosso inesquecível Honestino Guimarães.
Canudo na mão, Henrique Goulart Gonzaga Júnior logo estaria brilhando como repórter nos jornais da cidade e, em pouco tempo, nas sucursais dos principais veículos nacionais como Jornal do Brasil, Folha de S. Paulo e Estadão. Habituei-me a vê-lo batucando em sua máquina de escrever na redação da Folha, que a gente via funcionando rente à calçada, numa espécie de vitrine ali na comercial da 104 Sul, onde moro faz 40 anos. Ali, entre uma reportagem e outra, ele virava o Gougon, assinando charges com um jeito todo seu de fazer humor e ver especialmente a vida política do país e seus atores. Hoje, teria abundante, mas dramático, material a partir da pouca vergonha dos políticos que maculam o nosso Congresso e dilapidam o erário público.
E isso tudo pode ser sobejamente aquilatado nos impagáveis livros que deixou, entre eles, Que país é este (1989) e Dosimetria das penas (2013). É humor em dose dupla, na hora certa, quase on-line. Para gáudio e alegria de seu público.
Convivi com Gougon e guardo comigo momentos memoráveis desse convívio, sempre aquecido por motivações artísticas, intelectuais e políticas. Há 20 anos, ao mostrar-lhe um poemeto de minha escassa lavra, ele logo se entusiasmou e me propôs transformá-lo em uma de suas intervenções em mosaico. E assim foi feito, e inaugurou-se festivamente com direito a discurso e muita cerveja. Hoje, ela repousa sobre a relva de pequena área ajardinada, em frente da nossa Fundação Cinememória, na W3 Sul. De outra feita, nos juntamos ao poeta-mor, Nicolas Behr, e subimos os três em resoluta performance até o cume dos quadradinhos do nosso saudoso Athos Bulcão, no Teatro Nacional, e lá, com faixas e baticum ruidoso, lavramos o nosso protesto contra uma criminosa pichação ali perpetrada. Tudo testemunhado e divulgado pela mídia acionada por Gougon.
Por último, e quando ele se apresentava ainda em plena forma física, realizamos mais uma de nossas façanhas. Gougon sacou uma peça perfeita: uma lápide com inscrições em memória das vítimas da terrível chacina da Pacheco Fernandes, durante a construção de Brasília. E lá fomos os três com um séquito de amigos e a implantamos em lugar de destaque na Vila Planalto. À noite, e com consentimento da Igreja, o Cinema Voador, de José Damata, encerrou nossa jornada com a exibição de um filme alusivo, claro, ao episódio.
Esse era o Gougon que reverenciávamos e que partiu neste fim de semana, deixando profundamente consternados os seus familiares e toda a comunidade brasiliense. Ficará para sempre vivo em nossa memória.
*Cineasta e professor emérito da Universidade de Brasília (UnB)