Opinião

É preciso plantar o feijão

A PEC da Anistia desconsidera o percentual dos afrodescendentes na composição do tecido populacional do país. Não há como negar que o racismo, condenado na Constituição e no Código Penal, segue sendo praticado pelos legisladores, que têm o poder de se autoperdoarem

Na semana passada, assistimos à aprovação da PEC da Anistia. Os parlamentares perdoaram os partidos que reduziram ou negaram financiamento às candidaturas de pretos e pardos nas eleições passadas. O efeito da PEC se estende ao pleito municipal deste ano e aos futuros. A previsão inicial é de que a perda dos negros será de pelo menos R$ 1 bilhão no custeio de novas candidaturas. Mais uma vez, eles enfrentarão o subfinanciamento de suas campanhas para acesso aos espaços de poder nos legislativos federal, estadual e municipal. Não há como negar que o racismo, condenado na Constituição vigente e no Código Penal, segue sendo praticado de modo escamoteado pelos legisladores, que têm o poder de se autoperdoarem.

O último Censo Demográfico, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em 2022, revelou que 55,5% dos brasileiros se reconhecem como pretos e pardos. Mas as cotas raciais são apenas de 30% para esse grupo majoritário e divididas com os indígenas. A regra preserva a injustiça social e étnica-racial e os obstáculos históricos para o acesso a vagas de empregos, ao ensino superior, aos concursos públicos e tantos outros que possam significar ascensão social e econômica dos não brancos.

A norma, sem cerimônia, desconsidera o percentual dos afrodescendentes na composição do tecido populacional do país. Não há como negar que as cotas raciais reduziram o fosso socioeconômico que, etnicamente, divide a sociedade e sustenta o racismo, mas está longe — muito longe — de estabelecer equidade entre negros e brancos. As cotas raciais foram, e continuam sendo, importantíssimas para que os negros  ingressassem nas universidades. E, agora, tornaram-se norma nos concursos do serviço público. Um avanço considerável. 

Mas não só isso. Para a professora e antropóloga Renata Nogueira, que ministra cursos de educação antirracista para professores, na Subsecretaria de Formação Continuada dos Profissionais da Educação do DF (Eape), as cotas raciais impulsionam a identificação da população como negra, reduziram as desigualdades raciais, exibiram a construção de exemplos positivos que estimulam as pessoas a almejarem espaços sociais de prestígio, inserção nas universidades e no serviço público. 

A professora Dione Moura, diretora da Faculdade de Comunicação da Universidade de Brasília, vitoriosa na luta pela implantação das cotas, transformou inúmeras vidas. Mas ela se coloca contra os projetos que tornam as cotas permanentes. "Imagine que você tenha 10 sementes de feijão preto e decida separar duas para plantar e regar. Elas brotam e dão frutos. E as outras oito sementes que não foram plantadas? Não irão vicejar",  assim ilustra a professora o atual momento.  Ou seja, o fosso entre pretos e brancos será preservado, mantendo a injusta desigualdade étnica-racial no país, que alimenta o descabido e criminoso racismo. A mudança só ocorrerá quando plantarmos todos os feijões, a fim de tornar letra viva o mandamento constitucional: "Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza" (artigo 5º).

 


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