A Justiça como fator de instabilidade da democracia

A prática no Brasil tem demonstrado que, mesmo depois de eleitos, os escolhidos por voto popular podem perder os mandatos porque houve uma simples mudança na interpretação das leis. Os critérios jurídicos se tornam consistentes como éter

Everardo Gueiros — Advogado e ex-desembargador do Tribunal Regional Eleitoral do Distrito Federal

O bom juiz de futebol é quase invisível em campo; discreto e eficiente, termina a partida sem influir no resultado. O mesmo deveria valer para o juiz eleitoral. A discrição no pleito não significa omissão, mas as eventuais ações não terão o condão de ajudar ou atrapalhar os envolvidos na disputa. O que deve prevalecer na democracia é a vontade soberana do povo.

A prática no Brasil tem demonstrado o contrário: mesmo depois de eleitos, os escolhidos por voto popular podem perder os mandatos porque houve uma simples mudança na interpretação das leis. Em fevereiro deste ano, por exemplo, o Supremo Tribunal Federal (STF) se manifestou vetando regra sobre o uso de sobras eleitorais para eleições proporcionais de deputados federais nas eleições de 2022. Apenas quatro meses depois, em junho, o mesmo STF mudou mais uma vez sua interpretação sobre o mesmo regramento. O que antes valia passou a não valer mais. Os mandatos nascidos das sobras se desfizeram no ar.

Com a nova interpretação, sete deputados federais devem perder seus mandatos ao fim do julgamento, cuja maioria foi formada mas aguarda manifestações finais. Isso, claro, se não houver nova mudança na disposição dos ministros. Sete candidatos ficaram sem exercer metade dos mandatos a que teriam direito por uma decisão majoritária até fevereiro. Outros sete serão deputados com direito somente à metade do mandato, segundo uma visão jurídica válida a partir de junho. Em síntese, o sagrado voto popular foi salomonicamente impactado pelas idas e vindas do Supremo. Pode isso, Arnaldo?

Observem: isso ocorreu na corte suprema do país, uma das mais estáveis em sua composição. O Tribunal Superior Eleitoral (TSE), por exemplo, tem mudanças muito mais frequentes, porque há uma rotina bienal (com possibilidade de recondução por igual período) de troca dos representantes do STF, do STJ e dos indicados pelo presidente da República — modelo que se multiplica nas instâncias inferiores. A Justiça Eleitoral fica exposta de forma muito mais acentuada, portanto, às alterações de pensamento pelas trocas em seus integrantes.

Os exemplos citados explicitam que, hoje, não importa tanto a lei, mas sobretudo quem decide sobre o texto legal para saber o resultado de um julgamento. Não vale o que está escrito, mas quem lê a legislação segundo as suas inferências, idiossincrasias, ideologias, amizades, crenças e preferências personalíssimas. Os critérios jurídicos se tornam consistentes como éter.

A subjetividade passa a ser a determinante do processo eleitoral. Essa imensa variedade de interpretações se multiplica nos estados: as linhas divisórias estaduais podem dar a liberdade a um governante de usar as redes sociais oficiais que é negada ao vizinho territorial. A ausência de isonomia é sintoma de fragilidade das leis frente aos homens. As instituições deveriam ser fortes. Não é o que tem se verificado.

Os destinos de governos e a vontade do povo podem ficar afetados de forma indelével. O caso da recente decisão da Justiça Eleitoral do Distrito Federal é revelador. Foram anuladas as gravações do empresário Durval Barbosa, que incriminou diversos políticos de Brasília. Por quase 15 anos, os efeitos dessas gravações afastaram políticos de disputas eleitorais, limitando alguns grupos políticos e permitindo a ascensão de outros. Agora, não mais são válidas as provas — seus efeitos pretéritos, entretanto, não se apagarão, mas o futuro pode ser muito alterado a partir dessa nova leitura legal.

Sem entrar no mérito das decisões, o que se procura aqui demonstrar é o impacto das alterações frequentes de interpretação em nosso tecido democrático. Seja pelo que significaram no passado, seja no que podem gerar em nosso futuro. Esse esticar e encolher pode esgarçar o tecido social, enfraquecendo as instituições e a nossa democracia.

Há ainda o preocupante fenômeno, que é muito característico de regimes autoritários: a censura com facetas diversas e múltiplas. Ao limitar a propaganda eleitoral, retirar programas do ar, censurar notícias, o Judiciário inibe cidadãos e políticos de se posicionarem na arena pública. A censura chega a obrigar veículos da imprensa a retirar publicações do ar — e, muitas vezes, voltam atrás diante da má repercussão. O efeito é suprimir o direito do eleitor de se informar corretamente. O acesso a determinadas informações e correntes de opinião fica tolhido, e o julgamento popular fica sem bases factuais sólidas.

A supressão do livre direito à manifestação é o maior obstáculo à democracia de fato e de direito em nosso país. Quando se impede o cidadão de ter o direito de vocalizar suas posições, impõe-se a normalização da censura. O exemplo cala outros tantos, num efeito silenciador que precede as crises democráticas. Esse silêncio vai ficando cada vez mais ensurdecedor em nosso país. É bom lembrar: a voz do povo é o que mantém desperta nossa democracia.

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