O apego à aliança política por preferência ideológica somente faz sentido quando a democracia e o Estado de Direito são respeitados. Ante as evidências de irregularidades nas eleições da Venezuela, Luiz Inácio Lula da Silva — na condição de presidente da maior nação do Hemisfério Sul — tinha o dever moral de condenar o comportamento do presidente Nicolás Maduro e de reconhecer Edmundo González Urrutía como líder eleito. A postura de Lula não condiz com a de chefe de Estado de um país que esteve prestes a sofrer um golpe sob o governo de Jair Bolsonaro. Também é incoerente, quando se recorda que o Brasil enfrentou os anos de chumbo, entre 1964 e 1985, com a diferença de que, enquanto por aqui o poder estava com os militares, na Venezuela, ele permanece nas mãos de um civil que comprou os militares com cargos no governo, com dinheiro e compra prestígio. Maduro destruiu a Venezuela. Corroeu a economia, dilapidou a sociedade, forçou a fuga de milhões de pessoas para o exílio.
Em meio ao desastre, Maduro aperta o cerco à oposição e tenta sufocar as vozes das urnas. Típico de ditadores, que têm desprezo pelo mínimo sinal de democracia. Na noite de segunda-feira, depois que os opositores María Corina Machado e Edmundo González Urrutía conclamaram as Forças Armadas a se colocarem ao lado do povo e a desconhecerem Maduro como presidente, o assecla de Hugo Chávez determinou uma investigação criminal contra ambos e convocou Edmundo a prestar esclarecimentos no tribunal. Enquanto isso, imagino quantos prisioneiros políticos amargam dias e noites de tortura e de horror no Helicoide, o famigerado centro de detenção de Caracas, e em outras masmorras da Venezuela.
Lula, como democrata, não pode compactuar com desmandos e atitudes despóticas de supostos aliados ideológicos. Quem surrupia as eleições e faz galhofa do voto merece apenas desprezo. Lula tinha a obrigação de liderar uma frente latino-americana para exigir de Maduro o respeito à soberania popular. Alinhar-se a um ditador equivale a manchar a biografia de um governante que não pode se dar o luxo de errar, especialmente por ter ganho a confiança da população para um terceiro mandato. As declarações do brasileiro, logo depois das eleições de 28 de julho, foram desastrosas, ao minimizar algo tão grave. Na segunda-feira, ao ser recebido com vaias no Chile, o líder petista pediu que Maduro e oposição iniciem um "diálogo". Fico pensando se faria o mesmo caso Bolsonaro não tivesse aceito o resultado das últimas eleições e não lhe entregasse o poder.
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É preciso separar a ideologia do compromisso com a moral. Ser de esquerda, de centro ou de direita, e apoiar ditaduras — de extrema esquerda ou de extrema direita — não o fazem coerente. Pelo contrário: tal comportamento indica tendência a idolatrar apenas uma corrente de pensamento, ainda que o seu representante cometa atrocidades. Lula não personifica apenas a esquerda. Fala em nome do Brasil, de uma democracia. E precisa se pronunciar, em alto e bom som, contra as tiranias.
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