Escrevo ainda sem saber todos os resultados de mais um sábado olímpico. Mas posso dizer que já vi o suficiente, hoje e ao longo dos dias dos jogos de Paris, para saber o que o esporte é capaz de fazer por pessoas periféricas e pobres e o que essas pessoas são capazes de fazer pelo Brasil — não apenas em jogos olímpicos, mas em outros campeonatos mundiais, demais competições e na "vida real".
Falar de superação pessoal é cair num discurso gasto, embora real, pois cada um dos nossos atletas medalhistas têm sua história, de muita luta e sacrifícios familiares. Superação, para eles, é quase uma obrigação — e não deveria ser assim. Nossos atletas cavaram suas oportunidades. Já imaginou se não precisassem de tanto sacrifício, tanta renúncia, tanto esforço de suas famílias?
Com apoio real do país desde a infância, teríamos muito mais pódios, mais medalhas e menos sacrifícios pessoais de nossos meninos e meninas. As oportunidades não precisariam ser arrancadas a fórceps; deveriam ser generosamente entregues a todos.
Hoje, vi Rebeca Andrade, uma estrela, maior medalhista olímpica brasileira ganhar mais uma prata: criada por uma mãe solteira, faxineira, com mais sete irmãos. Vi Rafaela Silva, da Cidade de Deus, garantir o bronze na última luta pela disputa por equipe mista de judô. Nossa Ketleyn Quadros, de Ceilândia, primeira mulher a conquistar o ouro em uma prova individual, em 2008, também estava lá na equipe de bronze.
E o que dizer de Bia Souza, que garantiu o ouro em sua primeira olimpíada?! Um corpo que convive com todo tipo de discriminação agora ostenta uma medalha de ouro histórica. Todas essas mulheres são negras, de origem pobre, que vencem não apenas por medalhas. Vencem preconceitos — e como isso é revolucionário nas olimpíadas! A gente se emociona com elas a cada conquista, a cada desabafo e a cada lágrima que lava também nossa alma.
Durante a semana, foi a vez de Caio Bonfim, o menino de Sobradinho, que venceu tantos desafios físicos, trazer a primeira medalha brasileira na marcha atlética. Com a prata no peito, Caio também falou sobre os preconceitos que sempre sofreu. Enquanto treinava e vencia seus limites pessoais, ouvia que "rebolava".
Como escrevemos na nossa matéria, "doze anos, três tentativas frustradas, muito preconceito e xingamentos depois, a referência das pistas do Centro de Atletismo de Sobradinho (Caso) pode se orgulhar: é o primeiro medalhista olímpico do país na modalidade".
Em entrevista à equipe de Esportes do Correio, liderada pelo extraordinário jornalista Marcos Paulo Lima, Caio nos emocionou: "Marchando naquelas ruas (Sobradinho), ganhei várias medalhas olímpicas sonhando. Não pensei nisso durante a prova, porque é preciso ser racional, é nos treinos. Isso estava no íntimo do meu coração. Queria ter a ousadia do Rio-2016, a experiência de Tóquio-2020 e o primeiro amor de Londres-2012. Conseguimos aqui", disse.
Você conseguiu, Caio. E nós, brasileiros, brasilienses, poderíamos ter sido muito mais generosos com você e sua família obstinada pela marcha atlética durante a jornada e não apenas com a sua vitória.
Que todos esses atletas vibrem! E que jamais se sintam obrigados a trazer resultados em outras provas. Eles não devem nada a ninguém, nem mesmo a eles próprios, nem mesmo ao Brasil. O país é que deve a eles e a todos nós a compreensão real de que é preciso dar às nossas crianças, sobretudo as pretas e pobres, já tão vulneráveis, oportunidades reais no esporte. Acorda, Brasil!