MARCELO COUTINHO - Professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro(UFRJ) e especialista na indústria do hidrogênio verde
O macroclima se deteriorou significativamente. Basta ligar o noticiário para ver os primeiros resultados disso. A transição energética começou tarde. Porém, ela vem ganhando celeridade. O mundo conseguiu frear bastante o aumento do uso dos combustíveis fósseis. A matriz elétrica mundial é cada vez mais limpa, e os carros elétricos seguem ganhando espaço. Isso é ainda insuficiente, mas é alguma coisa nada desprezível.
Os brasileiros estão cientes do desafio climático, embora ninguém queira pagar o preço da transição energética, mesmo que o preço de não fazer a transição seja muito maior, como nos mostrou o Rio Grande do Sul. Quando não é chuva demais e inundações, é a seca. Estudo recente publicado na revista Nature Communications mostra que a seca no Cerrado é a maior dos últimos sete séculos. O solo está, em média, tão quente que a água da chuva não chega aos aquíferos porque evapora antes. A seca também piora muito no Pantanal. E há um processo de desertificação na Caatinga que deve, agora, acelerar.
O Brasil que se tornou exemplo ao mundo por causa das fontes elétricas renováveis, agora, parece dar um passo em falso com os biocombustíveis, que emitem carbono e promovem a destruição dos biomas. Os biocombustíveis se tornaram mais lesivos para o clima do que o próprio petróleo por dois motivos. Primeiro, são também combustíveis orgânicos, e a mudança no uso da terra que os produz tornou-se a principal emissora de carbono do país, superando até mesmo o setor de transporte. Segundo, o aumento do cultivo de soja, milho e cana — com os quais se faz os biocombustíveis — tem deteriorado os solos e criado bolsões de calor bem no meio do país, o que acaba afetando as demais regiões.
O governo e o Congresso adicionaram, compulsoriamente, mais quantidades desses biocombustíveis na frota nacional. Etanol, biodiesel e similares vêm de plantas. Plantas precisam de terras, e essas terras cultivadas têm avançado sobre os biomas de uma forma cada vez mais agressiva, agravando, exponencialmente, as massas de ar quente e seco. No entanto, o lucro empresarial e conveniências políticas alimentam a ilusão nociva na sociedade de que os biocombustíveis são uma solução genial para combater as mudanças climáticas, sendo, na verdade, um dos vilões do aquecimento global.
Sendo bem claro: os incêndios florestais são propositais. O plano em andamento no país é destruir os biomas para continuar ampliando a produção de commodities, que afinal de contas é o que sustenta a economia brasileira. Antes era para atender a demanda chinesa crescente, sobretudo para o rebanho de porcos. Mas a China já não aumenta suas compras de grãos como nas últimas décadas, de modo que o agronegócio agora devasta as florestas e as matas brasileiras para produzir não somente alimentos de exportação, e, sim, principalmente biocombustíveis para uso local. Tudo isso com o incentivo do governo, que tenta apagar o fogo com etanol.
É um círculo vicioso. Precisamos das commodities, elas concentram os investimentos, incentivos fiscais e regulatórios, e passamos a depender ainda mais delas. Em 2015, publiquei um livro intitulado Dependência Restaurada que chamava atenção para esse problema que só se agravou desde então. Em resumo, antes éramos um país bastante industrializado e com parcerias internacionais diversificadas, nos últimos 20 anos voltamos a ser uma economia primária exportadora, sempre associada ao subdesenvolvimento. A novidade agora, é que esse primarismo econômico começou a se estender também para a produção de combustíveis de abastecimento interno.
A transição energética é uma excelente oportunidade para a reindustrialização brasileira que está sendo desperdiçada. O lógico seria o Brasil aproveitar a economia sustentável porque tem enormes vantagens comparativas. Mas se auto- engana com os lobbies ruralistas. A industrialização com os combustíveis verdes é a nossa última chance de sair de uma jaula fazendária, em que dependemos cada vez mais das commodities que, por sua vez, não solucionam os deficits fiscais estruturais. A maior das reformas agora é a reforma ecológica. Infelizmente, de última hora, houve uma movimentação nos bastidores, e o marco legal aprovado no Congresso quase duplicou o teto de emissão de carbono só para beneficiar fontes sujas de hidrogênio, sobretudo oriundos do etanol, que nunca vai se enquadrar às normas internacionais de descarbonização.
Embora a Lei do Hidrogênio, aprovada no país, não seja a ideal, o mais importante é que essa etapa foi concluída. O hidrogênio verde é a grande chance de o Brasil, finalmente, desenvolver-se, pois é o combustível limpo que o mundo está adotando, e temos vantagens comparativas. Não acontecerá da noite para o dia, mas deu-se início, sim, à corrida do ouro dos novos tempos.
O hidrogênio verde ainda é muito mais caro do que o hidrogênio cinza, e a infraestrutura de escoamento da produção levará alguns anos para ser instalada. Portanto, o ideal é disparar agora plantas de fábricas com produção menor, porém, viáveis economicamente, como no caso dos projetos da SL Energias no Maranhão, onde têm abundância de água e energia renovável, e também compradores, poderá haver uma fábrica de H2V no país. E com o tempo, vai-se ampliando a escala.