Por Dlaman Kobina*
As grandes navegações, a Grécia antiga, a descoberta das Américas, o século das luzes. Narrativas históricas apresentadas nas escolas, na mídia, em nomes de ruas, nas igrejas, inflam o ego da Europa e usam a história como propaganda. Se esse povo é assim tão grandioso, resta aos demais apenas submissão. A história é usada como instrumento educativo para intimidar e destruir a confiança do povo preto em si mesmo. Manipular a história é manipular a consciência.
O psicólogo Amos Wilson discutia as implicações psicológicas e psiquiátricas da historiografia eurocêntrica no povo preto. Ao roubar e distorcer a história, os europeus projetam uma consciência falsificada em nós. Criam uma amnésia histórica, uma vida baseada na negação, na inconsciência das próprias fontes de comportamento, pensamento e cultura. Como Wilson dizia, "se não conhecemos nossa história, não conhecemos nossa personalidade".
Retomemos a sede pelo conhecimento histórico. A história preta é uma fonte de poder para levantarmos a cabeça em continuidade a um povo rico em tecnologia, economia, cultura, espiritualidade, ciência e educação. Aliás, educação e história sempre foram preocupações nossas.
Em Kemet (antigo Egito), há pelo menos 4 mil anos, havia avançados centros de ensino chamados Per Ankh (casas da vida). Funcionavam como escola, biblioteca e local de cópias de arquivos. Apesar do que mostram produções do cinema, o Egito antigo era feito de pessoas pretas, como provou o polímata Cheik Anta Diop.
Descendo ao sul de África, tem-se os sangomas. São, eles e elas, responsáveis pelo contato com o mundo espiritual, pela saúde da comunidade e por repassar a tradição e a memória histórica de seu povo para novas gerações.
Na região oeste do continente, onde se deu a Era de Ouro (do século 8 ao 16), encontramos mais exemplos do valor da história e da educação. Os djélis, dentre o povo mandinga, eram responsáveis por educar a comunidade ao contar a história do Império do Mali com oralidade e musicalidade.
Mansa Musa, o homem mais rico da história, não dava valor apenas ao ouro. Esse soberano do Império do Mali era um "ardente patrono das ciências e das artes", afirma John G. Jackson. Em 1324, enquanto a Europa sucumbia à Idade das Trevas sob doenças, guerras e conflitos religiosos, Mansa Musa peregrinou até Meca doando ouro, desestabilizou a economia aurífera do Cairo por 12 anos.
No século 15, no Império Songhay, a Universidade de Sankore, em Timbuktu, com acervo histórico, atraía milhares de pesquisadores e estudantes próximos e distantes. Jené, no atual Mali, tinha uma universidade com milhares de professores e uma escola médica que treinava médicos e cirurgiões habilidosos.
Já a história da educação brasileira é uma história de exclusão do povo preto. Não sem enfrentamentos. Mesmo diante de legislações proibicionistas, pessoas pretas se organizavam com a alfabetização dentro das irmandades negras, a contratação de professores, a escolarização de negros libertos, a preservação da memória nos terreiros de candomblé, entre outras iniciativas.
Em 1983, o deputado federal Abdias do Nascimento propôs legislação que integrava nos currículos escolares a história do povo preto e as contribuições tecnológicas e culturais africanas. O Projeto de Lei nº 1.332/83 representava a sede do povo preto por sua história. Não bastava estar dentro de uma escola, era necessário que a grandeza histórica preta fosse apresentada às crianças e jovens.
Apenas em 2003, foi incluída a obrigatoriedade do ensino de história e cultura de África e do povo negro com a Lei nº 10.639. Em relação à proposta de Abdias, a lei de 2003 apresentou generalização do que deveria ser feito, nenhum cronograma ou obrigatoriedade de prestação de contas. Passados 21 anos, percebemos a fragilidade da aplicação da lei. Pesquisa publicada em 2023 pelo Geledés Instituto da Mulher Negra mostra que ações com ensino de história e cultura negra e africana são pontuais em 53% dos municípios, e 18% não têm qualquer ação.
Os dados estarrecedores, alinhados a estatísticas de genocídio e exclusão do povo preto, mostram a urgente necessidade de uma consciência histórica forte, alinhada à ancestralidade africana e à preocupação milenar com nossa educação. Como um sinal de esperança, por todo o Brasil, há diversas iniciativas autônomas que caminham nesse sentido ao produzir materiais educativos que fortalecem pessoas pretas, como jogos e livros, com história e cultura preta e africana.
*Escritor, professor da rede pública do Distrito Federal e estudioso de história e cultura africana e de educação afrocêntrica
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