Opinião

Artigo: O jeitinho

A faceta mais significativa da alma nacional responde pelo simpático nome de jeitinho brasileiro. Ele atravessa todos os estratos sociais e se faz presente até na cobertura deste imenso condomínio

3008 opiniao -  (crédito: Caio Gomez)
3008 opiniao - (crédito: Caio Gomez)

José Horta Manzano*

Todo povo tem um conjunto de características próprias que o distingue. Assim, também no Brasil temos atributos que perpassam a população. Mas vamos examinar primeiro as características que não costumam ser associadas ao brasileiro.

O brasileiro não tem a aplicação dos povos do Extremo Oriente, em especial o japonês. De fato, um país com muita gente e pouca terra, como o Japão, exige de seus habitantes qualidades, como paciência, comedimento, rigor e aplicação. Se cada um agisse sem se importar com os demais, o país não teria alcançado seu atual nível de civilização.

O brasileiro não tem a audácia dos colonizadores da América do Norte. Diferentemente dos que para cá vieram, muitos dos imigrantes que povoaram aquelas terras deixaram a Europa na esteira de perseguições religiosas ou políticas. Vinham com a família, de mala e cuia, com a intenção de fincar pé para nunca mais voltar. Os rigores do clima recompensaram os audazes e deixaram os timoratos na beira da estrada.

Os brasileiros não compartilham o ultraconservadorismo resignado dos povos da Índia, que, neste 21° século da era cristã, ainda toleram viver numa sociedade estratificada em castas, sistema que ainda não implantou um elevador social. Quem nasceu na casta A nunca será aceito na B, muito menos na C. Ainda que, em nossa terra, alguns ainda torçam o nariz para o 13 de maio da princesa Isabel, felizmente não são maioria nem imprimem seu egoísmo na lousa das qualidades nacionais.

No meu entender, a faceta mais significativa da alma nacional responde pelo simpático nome de jeitinho brasileiro. Todos sabemos o que quer dizer, só falta definir com precisão. Tal como a palavra saudade, nosso jeitinho resiste a toda tentativa de definição clara e rigorosa. Será justamente porque clareza, rigor e precisão não combinam com o jeitinho.

Uma terra em que milhões conseguem sobreviver e seguir adiante com o salário de miséria que lhes toca mostra que seu povo tem poderes mágicos, inexplicáveis, quase atávicos. Em outros horizontes, uma revolução popular já teria defenestrado todo o andar de cima. (Para, em seguida, recomeçar do zero e, poucas décadas depois, retornar ao mesmo estado de coisas. Mas essa é uma outra história). 

Nosso jeitinho inclui atitudes altamente positivas. Nossa tolerância para com os que se desnorteiam é proverbial. Centenas de movimentos religiosos tratam de reintegrar no rebanho as ovelhas extraviadas. A flexibilidade de nossas atitudes tem algo de notável. Quem não tem cão caça com gato é ditado que faz sentido entre nós. O brasileiro não é de empacar se lhe falta um ingrediente para a receita: dá rápido um jeito.

Do lado menos charmoso, nosso jeitinho dá vazão a comportamentos e atitudes pouco elogiáveis. "Leis que pegam" versus "leis que não pegam" é fenômeno típico nosso. E isso nos parece normal.

Todos nos conformamos com a falta de rigor e com a falta de apego à lei. Cidadãos que são condenados hoje a pesadas penas e "descondenados" amanhã não causam escândalo. Costumamos nos resignar com imprecisões da lei. Criminosos bacanas que escapam à Justiça contam com nossa leniência — a frouxidão dos procedimentos legais não nos revolta.

Esse coquetel de imprecisão, elasticidade e ambiguidade se derrama e se aninha nos recônditos da alma nacional. Essa síndrome de informalidade se entranha em instâncias em que sua presença é extravagante. Ainda recentemente, Alexandre de Moraes, ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), frequentou as manchetes na sequência de uma denúncia de que foi vítima: foi acusado de se valer-se de procedimentos informais para angariar subsídios para processos que relata.

Só o futuro nos dirá se a denúncia contra o magistrado terá consequências. A bem considerar, ela é a prova de que o jeitinho nacional, que a gente imagina se restringir a castas inferiores, atravessa todos os estratos sociais e se faz presente até na cobertura deste imenso condomínio.

No regime do brasileiro, se arroz com feijão são o prato principal, o jeitinho é a mistura.

Empresário*

Gostou da matéria? Escolha como acompanhar as principais notícias do Correio:
Ícone do whatsapp
Ícone do telegram

Dê a sua opinião! O Correio tem um espaço na edição impressa para publicar a opinião dos leitores pelo e-mail sredat.df@dabr.com.br

postado em 30/08/2024 06:00
x