Eleição nos EUA

Artigo: Os novos novos democratas

Kamala já partiu para a narrativa eleitoral nacional, sem a radicalização inerente às prévias, quando o candidato do partido tem que apelar aos seus membros mais ativistas e radicais para obter a indicação

 US Vice President and Democratic presidential candidate Kamala Harris arrives onstage to speak on the fourth and last day of the Democratic National Convention (DNC) at the United Center in Chicago, Illinois, on August 22, 2024. Vice President Kamala Harris will formally accept the party?s nomination for president today at the DNC which ran from August 19-22 in Chicago. (Photo by Mandel NGAN / AFP)
       -  (crédito: AFP)
US Vice President and Democratic presidential candidate Kamala Harris arrives onstage to speak on the fourth and last day of the Democratic National Convention (DNC) at the United Center in Chicago, Illinois, on August 22, 2024. Vice President Kamala Harris will formally accept the party?s nomination for president today at the DNC which ran from August 19-22 in Chicago. (Photo by Mandel NGAN / AFP) - (crédito: AFP)

Michael López Stewart* 

O político em campanha busca uma marca, um branding que o diferencie de seus oponentes na corrida eleitoral. Com isso em mente, em 1992, o governador do estado de Arkansas, Bill Clinton, nas prévias do Partido Democrata, se apresentou como "um tipo diferente de democrata". O uso dessa frase, que evoluiu para "novo democrata", demonstrava que o branding preexistente do partido, a sua identidade ampla, havia se tornado mais um passivo eleitoral do que um ativo. Clinton buscava se diferenciar de políticos como George McGovern, Walter Mondale e Michael Dukakis ao se apresentar como um candidato diferente, um candidato que estava mais ao centro e mais conectado aos valores dos eleitores brancos de classe média que haviam abandonado o partido na década de 1980.  

Liderados por Clinton, os novos democratas adotaram uma nova linguagem de responsabilidade pessoal, de liberdade de escolha e de igualdade de oportunidade. O Partido Republicano estava em seu auge em meio ao boom econômico da década de 1980 e o fim da Guerra Fria. Foi nesse contexto que o Partido Democrata se reinventou.  Bill Clinton e os novos democratas trabalharam para implementar um novo branding de moderação, uma mistura de conservadorismo fiscal e empatia moral. Era uma alternativa ao extremismo ideológico da época, em que uma massa de eleitores se sentia desconfortável com os dois polos. Os paralelos com o atual momento são evidentes.  

A mudança de Biden para Kamala permitiu ao partido fazer uma espécie de recomeço. No início de agosto, em uma de suas primeiras grandes compras de publicidade eleitoral, a campanha de Kamala investiu milhões de dólares para veicular propagandas em estados da fronteira sul. A mensagem central da peça: Kamala Harris, como procuradora do estado da Califórnia, trabalhou para fechar a fronteira, acabar com o crime organizado e condenar os cartéis que controlam o tráfico de drogas. A propaganda ainda acrescenta que Kamala, enquanto senadora, apresentou o projeto de lei mais duro e ambicioso em relação à fronteira das últimas décadas.  

A campanha entendeu que a fronteira é um ponto fraco eleitoral e foi ao ataque em vez de utilizar a linguagem política de inclusão e acolhimento.  Essa estratégia ofensiva foi reforçada pelo discurso do ex-presidente Barack Obama, que disse que, na verdade, foi Donald Trump, ex-presidente e hoje candidato do Partido Republicano, que mandou engavetar uma proposta bipartidária no Congresso americano que ajudaria a solucionar o tema da fronteira.  Essa foi só uma das mudanças de postura. 

Em seu discurso, Kamala conseguiu apresentar-se de forma eficaz ao eleitorado americano. Ela não apresentou um programa de governo detalhado, mas trouxe um arcabouço moral imbuído de patriotismo que é, talvez, a maior mudança em termos de narrativa eleitoral dessa campanha. Se o propósito do partido opositor é fazer com que a América seja grande novamente (traduzindo aqui o slogan político de Trump), a mensagem de Kamala é que a América já é grande. 

Kamala, em seu discurso, disse que as forças armadas americanas têm que ser as forças mais letais do mundo. Ela falou sobre enfrentar ditadores, fortalecer as fronteiras, focar na classe média. Foi um discurso moderado, direcionado aos eleitores que ainda estão em jogo. Uma das mensagens mais fortes: "América, vamos mostrar a nós mesmos e ao mundo quem somos e o que defendemos: liberdade, oportunidade, compaixão, dignidade, justiça e possibilidades sem fim".  As narrativas mais esquerdistas, presentes em sua retórica antes de se tornar candidata, como a equidade e igualdade de resultado, não apareceram na convenção. Obama e Clinton tampouco falaram de equidade.

Aliás, é interessante observar o que mais não foi dito. A linguagem mais radical sobre o direito ao aborto não esteve presente. Os direitos das mulheres e os direitos reprodutivos foram apresentados em narrativas positivas, de casais que gostariam de ter filhos, uma narrativa eleitoral mais astuta. Outro exemplo foi a ausência de qualquer menção ao Defund The Police, uma das principais pautas da eleição de 2020, nascida no caos pandêmico do assassinato de George Floyd.

Derrotas recentes de membros mais progressistas do partido contribuíram para a viabilidade desse ajuste estratégico. Rep. Jamal Bowman (D-NY), crítico feroz da atuação de Israel, não se reelegeu. A Rep. Cori Bush, democrata do Missouri e membra do "Squad", grupo progressista da Câmara americana, tampouco se reelegeu. A candidata ao Senado pela Califórnia, Katie Porter, vocífera crítica dos moderados do próprio partido, também sofreu uma retumbante derrota. 

Esse pragmatismo radical só foi possível pelas circunstâncias únicas dessa candidatura. O Partido Democrata não fez prévias, que tendem a radicalizar o debate, já que o candidato do partido tem que apelar aos seus membros mais ativistas e radicais para obter a indicação. Como isso não ocorreu, Kamala já partiu para a narrativa eleitoral nacional, sem a radicalização inerente às prévias. 

Se a política é a arte do possível, essa Convenção mostrou que o Partido Democrata está direcionando todas as suas forças no alvo do possível. O objetivo, agora, é trazer um apelo amplo, mesmo que represente uma quebra com a tradicional e histórica insistência em coerência programática.  O que é possível, hoje, é um arcabouço moral imbuído de patriotismo arquitetado para máxima eficácia eleitoral.

Cientista político e sócio da Arko Advice*

 

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postado em 27/08/2024 06:00
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