ARTIGO

A lei do aborto carece de aprimoramentos

Congregamos os auditores e as auditoras que fazem a diferença para arrecadar tributos que serão revertidos para a população, para que haja desenvolvimento, sustentabilidade financeira e econômica do nosso DF

Plenário do Senado -  (crédito: Jonas Pereira/Agência Senado)
Plenário do Senado - (crédito: Jonas Pereira/Agência Senado)

» Luciano Fazio*

 

Como regra geral, o aborto é vedado no Brasil, com três únicas exceções: a mulher estuprada, o risco de vida da mãe e a anencefalia do feto. Nesses casos, é facultado o procedimento em qualquer fase da gravidez da mulher requerente. O Projeto de Lei nº 1904 (PL) restringe o direito ao aborto da vítima de estupro, proibindo-o após a 22ª semana de gestação e punindo-o como homicídio. Sessenta e seis por cento da  população é contrária ao PL (veja-se a pesquisa recente do Datafolha). Contudo, a atual lei do aborto é insuficiente e até inconsequente sob alguns aspectos, requerendo alterações, algumas restritivas e outras extensivas.

Não cabe permiti-lo sem regulamentação alguma, como se o nascituro fosse, durante toda a gravidez, apenas uma parte do corpo da mulher, passível de eliminação a seu exclusivo arbítrio. Também é inadequado proibi-lo desde a concepção, como querem alguns, baseados geralmente em interpretações fundamentalistas da Bíblia, que sequer trata diretamente do assunto. Até em Israel, onde os judeus ortodoxos integram o governo e que algumas igrejas cristãs brasileiras têm como referência, o aborto é permitido, inclusive para a gestante menor de 18 anos, maior de 40 anos, não casada ou que engravidou fora do casamento.

O legislador deve determinar se e quando o Estado deve assegurar o direito à vida do nascituro. Tal definição é difícil, mas — no âmbito médico — há um relativo consenso acerca da sobrevivência do feto fora do útero com 23 semanas após a concepção, justificando a vedação do aborto a partir deste momento. Tal prazo é a grande referência para a regulamentação, sendo menor em alguns países. Por exemplo, na Dinamarca, conhecida por sua liberalidade, o aborto voluntário é permitido até a 18ª semana de gestação.

Hoje, pela regra geral, o Estado brasileiro protege a vida do nascituro desde a concepção. Porém, contraditoriamente, a vítima de estupro pode interromper a gravidez até a véspera do nascimento da criança. Não é eticamente aceitável o aborto quando o nascituro for capaz de sobreviver em parto prematuro. Por isso, é justificada a proibição do procedimento após a 22ª semana no caso da mulher estuprada, como propõe o PL 1904, que assim defende que o Estado proteja a vida do feto só na segunda fase da gestação. Coerentemente com esse critério, seria razoável e oportuna a descriminalização do aborto no primeiro estágio da gravidez, inclusive na ausência de estupro, como ocorre em outros países.

Outro aspecto a ser considerado é o fato de que, hoje, o direito ao aborto é pouco efetivo, mesmo quando permitido por lei. Em 2022, uma matéria do Jornal da USP informou que apenas 76 hospitais no país declaravam realizar o procedimento de forma legal para as vítimas de estupro. Diante dessa angustiante dificuldade de acesso para a maioria das brasileiras, há quem diga que o limite das 22 semanas significaria a retirada, na prática, do direito ao aborto. No entanto, não convém corrigir um erro com outro erro. Cabe exigir o respeito aos direitos legais de todas as mulheres no âmbito da saúde pública, pois esse é o dever do Estado.

Ainda, o drama do aborto é parte de um problema mais amplo: a gravidez indesejada, que impacta milhares de mulheres e meninas a cada ano. Esse problema é, em grande medida, resultado da ausência de iniciativas preventivas por parte do Estado, com destaque para a insuficiência do combate à violência sexual contra as mulheres. Além disso, para a educação sexual nas escolas e nas unidades de saúde pública, é crucial a superação de tabus e da desinformação sobre o corpo e o sexo. Essa educação, baseada na ideia de que o sexo pode ser um elemento enriquecedor da vida e das relações humanas, deve também ensinar sobre os métodos contraceptivos. Isso contribuiria para a redução do número de gravidezes indesejadas e abortos.

Em resumo, a lei não pode se limitar a dispor quando o aborto é admitido e quando não. Deve também visar à efetivação dos direitos em questão, em particular garantindo o acesso ao procedimento de forma abrangente no país nos casos permitidos. Deve obrigar o Estado a promover ações preventivas que diminuam a procura pelo aborto. Além disso, deve ser capaz de contemplar, de um lado, a defesa do nascituro próximo do nascimento e, de outro, o direito de decisão de todas as mulheres sobre seus corpos.


*Matemático pela Università degli Studi de Milão/Itália e pós-graduado em previdência pela  Fundação Getulio Vargas (FGV)

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postado em 26/08/2024 06:00
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