O projeto colonial desenvolvido no Brasil teve por princípio criar aquilo que Achille Mbembe chama de "um mundo composto por duas categorias de pessoas: de um lado, os sujeitos que agem, do outro, os objetos sobre os quais se intervém". O escravizado, assim, é a experiência da cisão do humano e da ausência de autonomia, vontade e razão. Essa violência a um só tempo de dessubjetivação, exploração e extermínio foi o embrião dos grandes genocídios do século 20.
A transferência da violência em suas formas mais abjetas para o solo europeu foi o motor da criação, logo após a Segunda Guerra Mundial, da Organização das Nações Unidas e da subsequente Declaração Universal dos Direitos Humanos, que formulou um regime de direitos universais para todas as pessoas. Perante esse regime de direitos, Estados, como o brasileiro, assumem o compromisso com sociedades inclusivas, diversas e orientadas pela paz. Isso é o que também diz a nossa Constituição, que anuncia a igualdade e a justiça como valores supremos.
As normas de direitos humanos partem de duas premissas muito simples: a violação deve ser investigada e punida em tempo razoável e as vítimas e seus familiares devem ter centralidade nos processos de apuração de responsabilidade. O Estado brasileiro foi condenado diversas vezes pela Corte Interamericana de Direitos Humanos por não tomar medidas eficazes para reprimir delitos e proteger pessoas, propiciando impunidade e violando direitos humanos. São exemplos os casos Ximenes Lopes, Sétimo Garibaldi, Escher, Gomes Lund, favela Nova Brasília, trabalhadores da Fazenda Brasil Verde, Herzog, fábrica de Fogos de Santo Antônio de Jesus, Márcia Barbosa e Sales Pimenta.
Nos assassinatos de pessoas quilombolas, a falta de ação eficaz do Estado brasileiro decorre uma situação intolerável de impunidade sistêmica. O assassinato de Mãe Bernadete expôs de forma crua o problema da omissão e da falta de diligência devida nos homicídios de quilombolas. Com sua morte, que completou um ano no último dia 17, a sociedade tomou conhecimento de que ela lutava, há mais de seis anos, por justiça pelo assassinato de seu filho Flávio Gabriel Pacífico, o Binho do Quilombo. Depois de a própria família ter conduzido as investigações para elucidar o caso, suspeitos da morte de Binho foram finalmente identificados no último mês de julho.
Dados inéditos da Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq), reunidos no relatório Assassinatos de quilombolas — ameaças a quilombolas defensores de direitos humanos 2019-2024, apontam para uma quantidade desproporcional de homicídios de pessoas quilombolas nos estados do Maranhão, da Bahia e do Pará, assim como a lentidão absurda nos processos de titulação dos quilombos. As duas questões se alimentam e mantêm os resíduos de uma lógica escravocrata: negar direitos e eliminar corpos negros.
É a Constituição brasileira que afirma o reconhecimento do domínio das terras que comunidades quilombolas ocupam. A inércia do Estado na titulação reforça a percepção dos grupos hegemônicos de que são os únicos portadores de direitos, inclusive a ideia de que seu poder inclui o uso inconsequente da violência. Quando os processos judiciais se eternizam, os fatos não são devidamente investigados e os agressores não são responsabilizados, vai sendo semeada a certeza da impunidade e a de que o direito à vida da população quilombola não é fundamental para o Estado brasileiro.
Poucos meses antes de sua morte, Mãe Bernadete tinha estado com a presidente do Supremo Tribunal Federal em visita ao quilombo Quingoma, na Bahia. Em sessão do colegiado, a ministra afirmou que "ainda temos um longo caminho a percorrer, como sociedade, no sentido de um avanço civilizatório e da efetivação dos direitos fundamentais que nossa Constituição Cidadã assegura a todos". Quantas famílias quilombolas ainda terão de percorrer? Quando alcançarão paz, segurança e direitos nos seus territórios?
DEBORAH DUPRAT — Advogada e subprocuradora-geral da República aposentada; VERCILENE DIAS — Quilombola do quilombo Kalunga, coordenadora do Coletivo Jurídico da Conaq, doutoranda em direito pela UnB, pesquisadora, e especialista em direitos quilombolas; ÉLIDA LAURIS — Doutora em sociologia, pesquisadora em direitos humanos, especialista em violência contra quilombolas defensores de direitos humanos
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