Artigo

Um mergulho na evasão escolar

A paisagem educacional que contemplamos hoje deveria nos aterrorizar e encher de cautela e medo. O romance Jogados ao mar, de Cristovam Buarque, trata o tema com coragem e isenção

PRI-1408-OPINI -  (crédito: Maurenilson Freire)
PRI-1408-OPINI - (crédito: Maurenilson Freire)

EDUARDO NEIVA — Professor emérito de estudos de comunicação da Universidade de Alabama em Birmingham (EUA) e escritor

Jogados ao mar, o novo romance de Cristovam Buarque, é escrito à maneira das histórias de detetive. A narrativa começa na mente de um repórter investigativo de um influente jornal da nossa capital federal. O tema das laudas encomendadas ao repórter é de fundamental importância para o destino do país: a evasão escolar. O autor aborda frontalmente assuntos que estão profundamente arraigados às questões que geram os problemas sociais e culturais do nosso país, como a escravidão que se mantém até os dias de hoje numa falsa roupagem. 

Dados estatísticos revelam que, apesar de frequentar com regularidade a esfera pública brasileira, o tema da evasão escolar não tem sido visto com a seriedade de seus efeitos na vida de todos os brasileiros, mas são enfrentados pelo personagem chamado Véspera — o diretor de uma escola pública, descendente direto de escravizados africanos, que luta como pode contra esse mal.

Sem que muitos cidadãos compreendam, a escola deve prioritariamente ensinar, fomentar, disseminar conhecimento sem o quais o país naufragará num mar de ignorância e despreparo. A paisagem educacional que contemplamos hoje deveria nos aterrorizar e encher de cautela e medo. Essa é uma das questões cuidadosamente abordadas em Jogados ao mar, um livro de ficção que levanta problemas reais e sugere soluções e temas a serem pensados e debatidos por todos que se preocupam com a qualidade de vida no Brasil.

"Transformamos as escolas em restaurantes mirins". Apesar do paliativo parecer eficaz, deturpa-se irremediavelmente a função da escola quando a reduzimos a partidos políticos, quadras de esportes, templos religiosos e quartéis militares pelo simples fato de que essas instituições estão em direta contradição com a autonomia libertária que rege o verdadeiro propósito da educação. O papel social da educação num país decente estaria naturalmente restrito a disseminar equações, ensinar procedimentos gramaticais, promover o entendimento da sensibilidade artística, entre muitas outras formas. 

A escravidão e o trabalho servil foram abolidos, mas as suas sombras persistem. O tetravô de Véspera foi escravizado, trazido para o Brasil por um traficante e não tinha poder sobre a própria vida. No meio da viagem, atirou-se ao mar, mas "ele não conseguiu morrer. Sua vida não lhe pertencia". Precisamos deixar de nos comportar como se não fôssemos responsáveis por nossas vidas, como foi o caso do personagem. 

"A escola é o útero da liberdade". Um país de deseducados estará constantemente à mercê dos demagogos autoritários e inúmeros vigaristas de plantão que nos entorpecem com migalhas de conhecimento e crenças das mais variadas. Temos o direito a uma educação que nos transforme como país. Ainda que não sejam essas palavras da corrente de consciência do repórter investigativo do romance do professor e educador Cristovam Buarque, podemos até contemplar o pódio de medalhistas unânimes de uma única raça ou gênero de cidadãos historicamente oprimidos, mas continuaremos vendo a mesma inútil paisagem de desolação cívica e social. De mãos dadas com os delírios de superioridade racial que iludiram Adolf Hitler nas primeiras Olimpíadas de Paris.

Por mais gigantesca que seja uma nação, não há berço esplêndido que nos permita sobreviver aos assaltos de tamanho descaso. Do jeito em que as coisas se encontram, e sem patriotadas que nos embalem, e se tivéssemos juízo cívico, o país do carnaval, do futebol e do ouro fugidio das medalhas olímpicas seria um país de sonâmbulos. Como já foi dito tantas vezes, com medalhas ou sem glória esportiva, uma nação que se submete ao encanto de patriotismo sem substância jamais superará o papel que reservamos para nós mesmos, o de sermos um reduto para os piores canalhas. 

"O analfabetismo é uma gaiola invisível" e nos condena como país. "A escola boa para todos exige uma nova Lei Áurea, que não estava combinada". A ausência de um projeto nacional de educação, a insensibilidade das elites quanto ao destino dos mais desvalidos, a violência que irrompe no dia a dia brasileiro e até mesmo os cartões de crédito que carregamos no bolso são semelhantes ao da escravidão — mesmo que seja por um ato de vontade, o devedor de crédito vende o seu trabalho futuro.

Admito que cheguei às últimas páginas desse romance convencido de que Jogados ao mar ocupará, principalmente em sua diferença, um lugar ao lado de Dona Flor, Brás Cubas e Grande sertão veredas. Afinal, e de uma maneira assemelhada ao livro de Cristovam Buarque, esses três clássicos da literatura produzida no Brasil enfrentam enigmas e impasses cruciais para a vida dos brasileiros, respectivamente a licenciosidade e a sua contenção no romance de Jorge Amado, o conformismo fúnebre que a ironia de Machado não perdoa e a ferocidade violenta que a fabulação de Guimarães Rosa se ocupou em ilustrar. Entretanto, por mais grandiosos que sejam esses ficcionistas, que arbitrariamente cito, é igualmente notória a falta deixada por outros temas centrais para o entendimento dos cinco séculos que forjaram a vida e a experiência brasileiras. Dos quais Jogados ao mar trata com coragem e isenção.

 

 

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postado em 14/08/2024 06:00
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