Artigo

Uma cidade e seus inimigos

Houve um período em que algumas forças políticas se movimentaram para levar a capital de volta para o Rio de Janeiro e situá-la na Barra da Tijuca. Não deu certo. Brasília cresceu, emancipou-se e, hoje, é o terceiro maior conglomerado urbano

 Mudanças de fluxo em vias do Setor Comercial Sul começam na segunda-feira -  (crédito:  Toninho Tavares)
Mudanças de fluxo em vias do Setor Comercial Sul começam na segunda-feira - (crédito: Toninho Tavares)

ANDRÉ GUSTAVO STUMPF — Jornalista

Brasília é uma cidade que tem inimigos. Esse sentimento vai além do gostar, ou não, de sua forma modernista. Trata-se de uma espécie de ideologia contra a mudança da capital e a manutenção dos privilégios do Rio de Janeiro, que recebia gente de todo o país e não dava a menor atenção ao interior do Brasil. O presidente Juscelino percebeu que era muito difícil governar a partir de uma cidade em que uma simples greve de estudantes se transformava em assunto nacional. Que as famílias proprietárias dos grandes jornais faziam a opinião pública nacional.

A relação entre os grandes jornais e o governo JK é muito bem explicada no magnífico JB, A invenção do maior jornal do Brasil, conduzida por Odylo Costa Filho, de Luiz Gutemberg, editora Aeroplano. Ele detalha a relação dos proprietários dos grandes jornais com o presidente JK, que era do PSD, coligado com o PTB. A maioria da classe média carioca respondia aos chamados da UDN, que tinha em Carlos Lacerda, dono da Tribuna da Imprensa, como seu principal líder. As relações entre o Palácio do Catete e os jornais não foram sempre amistosas. 

A foto do presidente Juscelino, na primeira página do JB em seis colunas, numa atitude de quem pede verbas ao secretário de Estado norte-americano, John Foster Dulles, teve como consequência a negação do canal de televisão para o grupo dono do jornal. O Globo recebeu a sua concessão naquele período, do que viria a ser a TV Globo, canal 4, do Rio de Janeiro. Os interesses eram enormes e o espaço era muito limitado entre o Centro da cidade, a Zona Sul com seus bares e boates, e o Palácio do Catete, cuja frente passavam bondes nos dois sentidos. Os estudantes faziam greves se deitando nos trilhos, paralisavam a cidade e interferiam na vida do país.

Foi no famoso comício de Jataí, em Goiás, na campanha presidencial, quando o candidato Juscelino falando em cima de um caminhão, numa tarde de chuva, abriu para perguntas e recebeu a provocação de um morador: "O sr. vai cumprir as disposições transitórias da Constituição que determinam a transferência da capital para o Planalto Central?" O candidato disse que, se eleito, cumpriria a Constituição. Toniquinho, o autor da pergunta, entrou para a história, e a construção de Brasília se iniciou naquele momento. Os grandes ressentimentos também começaram a prosperar naquele exato minuto.

A curta história de Brasília, nos seus 64 anos de vida, envolve revoluções, renúncia de presidente, deposição de outro, militares mal-humorados, alguns deles chegados ao bom uísque, outros preocupados com o país. Jânio Quadros, no seu curto governo de sete meses, contribuiu para a cidade com a construção de um pombal na praça dos Três Poderes. Jango governou o Rio de Janeiro, onde participou do famoso comício da Central, em frente ao Ministério da Guerra. Os militares assistiram da janela ao último ato do presidente, que nem comunista era. Tratava-se de um grande proprietário de terras e dono de milhares de cabeças de gado. Entrou para a história como esquerdista.

Houve um período em que algumas forças políticas se movimentaram para levar a capital de volta para o Rio de Janeiro e situá-la na Barra da Tijuca. Não deu certo. Brasília cresceu, emancipou-se e, hoje, é o terceiro maior conglomerado urbano do país depois de São Paulo e Rio de Janeiro. O extraordinário crescimento em período tão curto trouxe problemas. O primeiro deles foi a representação política. No início, Brasília foi governada por um prefeito, cujas contas eram verificadas pela Comissão do Distrito Federal do Senado. 

A importância da capital transformou o prefeito em governador, primeiro nomeado pelo presidente e, depois, eleito.  A consequência natural foi o surgimento da Câmara Legislativa do Distrito Federal, herdeira direta das piores tradições da famosa Gaiola de Ouro que existia no Rio de Janeiro. Aliás, o legislativo carioca manteve até hoje o histórico de gastos públicos inexplicáveis e atitudes contra o melhor interesse da cidade. As milícias passeiam naquele território.

A CLDF aprovou, recentemente, um monstrengo chamado  Plano de Preservação do Conjunto Urbanístico de Brasília (PPCUB). Tem mais de mil páginas. Foi aprovado antes do recesso parlamentar de julho com poucas discussões e quase nenhum debate. O plano não preserva o Plano Piloto, ao contrário, adensa a ocupação dentro do projeto Lúcio Costa e permite liberação de gabarito na região tombada, cria espaços comerciais nas áreas verdes e aniquila com as principais virtudes do projeto da nova capital. E o pior: o plano beneficia alguns empresários. Nem o mais incisivo adversário de Brasília conseguiu desfechar um golpe tão violento contra o projeto modernista da nova capital. O governador Ibaneis Rocha anunciou que nesta semana vai aprovar o texto com 63 vetos. Melhor seria vetar tudo e começar de novo. Ou esquecer o assunto.

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postado em 12/08/2024 06:00
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