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Olimpíadas da diversidade: a história nunca falta

Um dos grandes momentos foi o acendimento da pira olímpica pelo ídolos negros e multicampeões franceses Teddy Riner e Marie José Perec. O evento reafirma a França contemporânea: multirracial, plural e multicultural

PRI-1008-OPINI -  (crédito: Maurenilson Freire)
PRI-1008-OPINI - (crédito: Maurenilson Freire)

JORGE SANTANA — Professor doutor de história do Instituto Federal do Paraná (IFPR)

Os jogos olímpicos retornam, pela terceira vez, à Cidade Luz, e Paris não perde uma das suas características: a capacidade de ser pioneira. Na terra em que nasceu o Barão Pierre de Coubertin, grande responsável pela criação dos jogos olímpicos modernos, a verve transgressora de Paris não dormiu no ponto. Contrariando Coubertin, que era avesso às mulheres disputarem os jogos, a atual edição é a primeira a ter participação equânime de competidores homens e mulheres.

A abertura, que deixou o mundo boquiaberto, inovou ao realizar um evento fora do estádio, usando o velho Rio Sena como um palco a céu aberto. Por ele, desfilaram artistas, delegações, atletas, músicos e também a história, uma participante que nunca se ausenta. A abertura dos jogos Paris-2024 reivindicou o lugar das mulheres no espaço público, e o tema foi pautado, lembrando — de maneira crítica — que a capital francesa tem 270 estátuas em homenagem a homens e somente 40 para homenagear as mulheres.

Para alterar esse cenário desigual, 10 estátuas surgiram na apresentação, com grandes mulheres na história da França, como a filósofa Simone Beauvoir e a cineasta Alice Guy, entre outras que ficaram de legado para a cidade. Em especial, Alicie Milliat, que enfrentou o machismo e realizou os Jogos das Mulheres em 1922, um protesto pela proibição das mulheres competirem nas olimpíadas em esportes considerados brutos demais para o "sexo frágil".

A simpática mascote da atual competição mundial é a Phryges, um desenho que remete ao barrete frígio, um chapéu ou gorro vermelho usado pelos revolucionários franceses de 1789 e que se tornou um símbolo da luta por liberdade. 

A delegação argelina quebrou o protocolo, assim como os corredores negros norte-americanos nos jogos olímpicos da Cidade do México, em 1968. Quando, no alto do pódio, os atletas Tommie Smith e John Carlos com luvas negras estenderam os punhos cerrados, reivindicando o fim da segregação racial e a garantia dos direitos civis para os negros na América do Norte.

Já em 2024, os atletas argelinos, em seu barco, eram aplaudidos por milhares de espectadores, enquanto jogavam flores vermelhas nas águas do famoso rio parisiense. As flores eram um protesto e uma homenagem aos compatriotas assassinados pela polícia francesa em uma manifestação contra o toque de recolher e em defesa da independência da Argélia (na época, colônia francesa). Mais de uma centena de argelinos foram violentamente assassinados e muitos jogados nas águas do Sena, em 1961. Um evento trágico em relação ao qual a França só pediu desculpas em 1998 — porém sem medidas de punição aos algozes ou reparação aos vitimados.

A cerimônia também teve espaço para saudar a equipe olímpica de refugiados, composta por 37 atletas que foram obrigados a fugir dos seus países devido a guerra, perseguições, fome e regimes ditatoriais. É a terceira edição com a participação de atletas com esse perfil — uma iniciativa que teve início há oito anos, nas Olimpíadas do Rio de Janeiro.

A diversidade esteve presente: na Ponte d'Iéna, drags queens fizeram uma linda performance do quadro A festa dos deuses, do pintor Jan Van Bijlert, que remete ao deus Dionísio ou Baco, divindade do vinho, do prazer e da festa na cultura greco-romana. No país conhecido pelo lema liberdade, igualdade e fraternidade, a homossexualidade era crime até 1982 e, apenas este ano, uma lei foi aprovada para indenizar pessoas LGBTQIA condenadas e presas quando era crime amar alguém do mesmo sexo.

Um dos grandes momentos foi o acendimento da pira olímpica, uma tradição que foi realizada pelos ídolos negros e multicampeões franceses Teddy Riner e Marie José Perec. O simbolismo de dois atletas negros, um homem e uma mulher, acendendo a pira olímpica reafirma a França contemporânea: multirracial, plural e multicultural, tão odiada e renegada pela extrema-direita gaulesa.

A bandeira olímpica tremulando por 16 dias no alto da Torre Eiffel é um alento pois, há 84 anos, uma bandeira vermelha com uma suástica no centro ocupava o mesmo local, símbolo avesso a toda pluralidade dos jogos Paris-2024. Também a história, uma convidada que não compete, abnegada de nacionalidade, mas que nunca falta quando a chama olímpica é acesa. 

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postado em 10/08/2024 06:00
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