EUA

Artigo: O enigma Kamala Harris

Se for escolhida, Kamala Harris terá que escolher nos próximos dias seu candidato a vice-presidente e herdará todo o esquema de campanha de Biden, inclusive as doações financeiras, o que é essencial na campanha eleitoral norte-americana

André Gustavo Stumpf*

A desistência de Joe Biden, anunciada ontem, muda bastante o rumo da eleição norte-americana. Ele deve ser substituído por Kamala Harris, atual vice-presidente, procuradora-geral na Califórnia, ex-senadora, mulher negra, qualificada, inclusive, para o debate contra Donald Trump. A decisão do presidente aconteceu depois que os principais doadores para a campanha dos democratas começaram a colocar condicionalidades para entregar dinheiro. Sem os preciosos dólares, Biden estaria derrotado antes mesmo de começar a corrida. Melhor sair e entregar a responsabilidade pela vitória para a cúpula do Partido Democrata.

Principais analistas brasileiros e norte-americanos davam como certa a eleição de Donald Trump para a Presidência dos Estados Unidos na eleição que será realizada no próximo mês de novembro. É sempre difícil prever resultados da escolha popular naquele país porque os primeiros constituintes criaram o Colégio Eleitoral, que funciona de maneira curiosa: o candidato que vence em um estado ganha os votos de todos os delegados. Desaparece a proporcionalidade. Na sua primeira eleição, Trump perdeu para Hillary Clinton no voto popular. Venceu na votação dentro do Colégio Eleitoral.

É uma distorção incrível, mas, nos Estados Unidos, não existe nem Justiça Eleitoral. Cada estado monta a eleição segundo suas tradições e suas leis. O Colégio Eleitoral, na origem, foi instituído com objetivo de defender as instituições do país e garantir que apenas pessoas honradas e qualificadas chegassem à Presidência. A medida não melhorou em nada a qualidade dos presidentes norte-americanos, nem garantiu que eles pertencessem à chamada elite nacional. George Bush Junior, por exemplo, que comandou guerras, não serviu o Exército e não era chegado a trabalhar. Gostava muito do uísque.

Donald Trump é um fenômeno na mídia. Foi apresentador de um programa de televisão que o colocou em destaque. É um milionário que se recusa a mostrar sua declaração de imposto de renda. Já foi punido por esse comportamento, mas continua a agir sem dar muita atenção para as determinações judiciais. Vez por outra, ele frequenta tribunais, faz ironia com os juízes e segue sua vida. Levou documentos secretos para sua casa na Flórida e nada aconteceu a ele. Nem repreensão. Ele é um importante líder da extrema-direita mundial.

É uma característica da vida nos Estados Unidos. Lá, o comunismo foi duramente perseguido com o início da Guerra Fria, e o partido, colocado na ilegalidade em 1954. Não há sequer o socialismo democrático no estilo europeu. No mundo do cinema, atores, diretores e redatores foram punidos com perda de emprego por terem supostamente ligações com a esquerda. O máximo em termos político-partidário que o americano chega, por meio do Partido Democrata, é o centro. Republicanos, neste momento, estão se colocando à direita, muito perto das ideias radicais dos líderes sulistas. A globalização transferiu empregos para  a China. Países emergentes começaram a produzir bens para o mercado norte-americano com custo mais baixo de mão de obra. A classe média pagou preço elevado dessa mudança.

Grandes empresas faliram, fábricas fecharam e surgiu o chamado cinturão da ferrugem, porque os equipamentos, em diversas cidades, se deterioraram expostos ao tempo, abandonados. No outro extremo, o americano médio enxerga a veloz ascensão da China e de seus vizinhos asiáticos — entre eles, o Vietnã, que foi o inimigo 50 anos atrás. Os Estados Unidos são um país belicoso desde a sua criação. Seus dirigentes descobriram que a guerra dá lucro e mantém grandes empresas funcionando com largos subsídios governamentais. 

Se for escolhida, Kamala Harris, filha de indiana com jamaicano, formada em direito e ciências políticas, terá que escolher nos próximos dias seu candidato a vice-presidente. Ela herdará todo o esquema de campanha de Biden, inclusive as doações financeiras, o que é essencial na campanha eleitoral norte-americana. A eleição presidencial colocou a política nos Estados Unidos na pior situação possível. Um candidato era considerado inapto por razões de saúde. Outro é considerado culpado por crimes diversos. As pesquisas indicavam que muitos eleitores preferiram não votar em nenhum dos dois.

No Brasil, uma eventual vitória de Trump iria excitar toda a direita nacional. Bolsonaristas tentariam, ou tentarão, tomar as ruas com seus bordões em favor da ditadura. O PT não tem outro candidato à Presidência, além de Lula. Haddad é um reserva já testado. Mas a esquerda fracassou em vários países da região. Cansou o eleitor. Se surgir um candidato equilibrado, capaz de entender o mundo atual, terá possibilidade de vencer. Tudo isso depende de Kamala Harris. Se ela fracassar, Trump terá uma avenida aberta para destruir tudo. 

 *jornalista

Mais Lidas