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Artigo: Evangelizar é oferecer peras d'água

Estamos presos em bolhas individuais cheias de nossas certezas. Peras d’água (suculentas e fáceis de digerir) devem ser oferecidas ao evangelizar, governar e na convivência em família

Otávio Santana do Rêgo Barros*

Domingo passado, perdi o horário da missa que costumo frequentar semanalmente. Atrasado, pesquisei no Google e encontrei nas proximidades outra paróquia com horário compatível. Que sorte! O celebrante da missa não era nativo de Brasília e tampouco estava acostumado aos ritos daquele santuário.

Seu forte sotaque carioca o denunciava ao marcar com chiados harmônicos as pausas das frases, enquanto dava relevo a pontos especiais da pregação. O evangelho do dia trazia a passagem na qual Jesus Cristo enviou seus apóstolos, aos pares, a fim de que pregassem para além de suas terras. 

O celebrante sustentava as ideias de forma pouco conservadora e, mesmo assim, a meu juízo, conquistava a atenção da maioria dos ouvintes. Lembrou-nos que o Mestre ao ordenar "ide e evangelizai" sabia que seus discípulos deveriam oferecer as ideias como saborosas peras d'água (suculentas e fáceis de digerir) em vez dos habituais e rígidos conceitos seculares.

Intuía o Nazareno que os corações duros e ressentidos dos que habitavam à época Jerusalém e seu entorno não seriam conquistados se não fossem dobrados serenamente com outras técnicas de convencimento e de comunicação. Em tom respeitoso, mas de leve crítica, o celebrante disse que é preciso adaptar os processos de conquista dos corações e mentes dos fiéis à Igreja Católica diante de um mundo em constante mutação.

E, para isso, sugeriu que mais vale aproximar-se sem formalidades e deixar-se tomar pela bondade para evangelizar do que criar, ou tentar criar, vínculos hierárquicos entre o "eu sei o que eu digo, você deve aceitar o que eu falo". Creio que os ensinamentos do religioso bem poderiam ser empregados em outras esferas e atividades da sociedade. 

Por exemplo: o ato de governar deveria ser equiparado a oferecer peras d'água da boa saúde, da efetiva educação, do trabalho dignificante, do equilíbrio da coexistência social. Conviver em família e entre amigos deveria ser equiparado a oferecer peras d'água da fraternidade, do amor doméstico, do apoio nas horas difíceis, das lições de vida compartilhadas.

Estamos cada dia mais rígidos em nossas opiniões e, em consequência, presos em bolhas individuais cheias de nossas certezas e alijadas de contrapontos alheios. A que atribuir essas atitudes cotidianas e repetidas das pessoas? À velocidade com a qual tomamos conhecimento dos fatos? Ao aumento das dificuldades de sobrevivência com as quais nos deparamos no dia a dia? Ao egoísmo que cresce junto com a ânsia de poder? À intransigência ornada de certo despotismo das autoridades constituídas?

O atentado contra o ex-presidente Trump, candidato do Partido Republicano à reeleição dos Estados Unidos da América, ocorrido no último sábado, mostrou ao mundo mais um exemplo do lado sombrio e oligofrênico da intransigência e do egoísmo que vicejam entre nós humanos. Nem bem a poeira da correria dos seguranças aparvalhados havia baixado e o sangue vertido por inocentes ter sido limpo do palco, os lados em disputa maniqueísta procuraram estabelecer o domínio da narrativa. 

Foi uma simulação clara, perpetrada por fascista, para conturbar ainda mais a campanha, disseram os democratas. Foi a mão de Deus que salvou a vida desse defensor da democracia ao fazê-lo girar a cabeça milissegundos antes do disparo, afirmaram os republicanos. 

Um amigo, esta semana, me enviou o texto de Ferreira Gullar com título O benefício da dúvida (publicado na Folha de São Paulo, em 19 de fevereiro de 2006). "(...) um pouco de dúvida não faz mal a ninguém. Aos messias e seus seguidores, prefiro os homens tolerantes, para quem as verdades são provisórias, fruto mais do consenso que de certezas inquestionáveis". Estou consciente que a cada dia esse benefício deve mais prevalecer. 

A propósito, após a missa, quando retornava ao carro, caminhavam ao meu lado dois casais que comentavam a forma como o celebrante conduziu a celebração. Para a minha surpresa, faziam críticas acerbas ao religioso. Chegaram a dizer que não tiveram conexão espiritual alguma com a mensagem e que a informalidade de suas palavras dificultara a compreensão e prejudicara o rito a que ele deveria subordinar-se e perseguir. 

Em reconhecimento ao pregador, fui comprar peras d'água no supermercado da esquina. Estavam maravilhosas.

General da reserva. Foi chefe do Centro de Comunicação Social do Exército*

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