Artigo

Brasília: preservação e transformação

Nos primeiros quatro meses deste ano, foram gastos R$ 80,5 milhões, segundo o governo. Nesse mesmo período, houve um aumento de 14% nas internações de motociclistas, em comparação a janeiro a abril de 2023

FREDERICO DE HOLANDA 

No âmbito das discussões em torno do Plano de Preservação do Conjunto Urbanístico de Brasília (PPCUB), volta à tona o tema de como preservar, o que preservar, como gerir as mudanças de uma cidade que é, ao mesmo tempo, Patrimônio Cultural da Humanidade e uma urbe viva e dinâmica. Muitos são os aspectos do PPCUB relacionados ao desenvolvimento da cidade, mas, aqui, o foco será questões de inclusão/exclusão social: combate-se, preserva-se ou amplia-se a natureza sabidamente excludente da capital? Ao longo do tempo, testemunhamos um paradoxo nas políticas patrimoniais: variam entre excessivamente permissivas e excessivamente proibitivas. O PPCUB reverte a tendência? No espaço deste artigo, três casos são discutidos à guisa de exemplos.

Embora as expressões não estejam no texto-chave que acompanha o seu projeto — Relatório do Plano Piloto de Brasília (doravante, RPPB) —, Lucio Costa incorporou os termos escala monumental, escala gregária, escala residencial e escala bucólica para referir os bairros da capital. Sobre a orla (escala bucólica), ele comenta: "Evitou-se a localização de bairros residenciais na orla da lagoa". No entanto, mestre Lucio propôs que "clubes esportivos, restaurantes, lugares de recreio, balneários e núcleos de pesca", aos quais, no tempo, juntaram-se hotéis, poderiam chegar à beira lago. Contudo, não só os clubes proliferaram na orla, como os hotéis mais recentes encostam na lâmina d'água, privatizando-a de fato. Pior ainda: travestidos de "apart-hotéis", implantaram-se grandes condomínios fechados de blocos de apartamentos de morada permanente, alguns privatizando uma área superior a seis campos de futebol (cerca de 60.000 m2), além de impedirem o acesso franco às margens. Urge reverter a perversa normativa pois ela afronta a escala bucólica, que deveria ser predominantemente natural, com acesso livre à orla, propícia ao lazer popular.

É bordão comum a necessidade de preservar as áreas livres do Plano Piloto. Bem, nem sempre. O centro metropolitano de Brasília, ou seja, a Plataforma Rodoviária e arredores, é um arquipélago de setores fracionado por vazios, enormes parques de estacionamento, vias expressas, diferenças de nível, percursos de caminhantes ao longo de nada, espaços públicos como sobras mal configuradas entre os prédios, um inferno para o pedestre. Uma "arquitetura de adições" seria muito bem-vinda. Aqui, interceptam-se duas escalas, a monumental e a gregária, no ponto de cruzamento dos dois elementos estruturais do Plano Piloto: o Eixo Monumental e o Eixo Rodoviário, na altura do fascinante complexo construído, em quatro níveis, da Plataforma Rodoviária. O plano propugna pela "preservação da Plataforma Rodoviária em sua integridade estrutural, arquitetônica e urbanística original", mantendo-se a "condição de área non aedificandi e das visuais livres do Eixo Monumental para leste e oeste do nível superior da Plataforma Rodoviária".

No entanto, o centro ganharia muito se o "buraco" existente entre os setores de Diversão Norte e Sul (Conjunto Nacional e Conic) fosse tapado. No caso, não é uma adição, é um resgate: o vazio não existe nos esboços de Lucio Costa para o local. O resgate adicionaria urbanidade à área, à medida que estabeleceria uma fachada ativa contínua entre os extremos norte e sul dos setores de Diversão, ao longo do deck superior da Plataforma Rodoviária. Com as atividades, o centro seria fortalecido com mais atividades, mais gente, mais bulício. Essa é apenas uma das "costuras" entre tantas possíveis.

Era uma vez uma avenida que era o centro da cidade: a W3 Sul. Hoje, é uma paisagem desoladora, com grande quantidade de lojas fechadas. São variadas as medidas que precisam ser tomadas para revitalizá-la, mas uma coisa é certa: as cosméticas, como as que estão em andamento, não servirão de nada. Foquemos nas medidas estruturais. Nunca se viu, em cidade alguma do mundo, uma avenida de alta centralidade, como essa, manca: ela tem comércio e serviços em apenas um lado da via; do outro, habitações unifamiliares, em baixa densidade. Carece perguntar: por que a sua irmã gêmea, a W3 Norte, não está decadente? É verdade que ela proporciona, mais que na Sul, a possibilidade de se parar o carro na porta do destino — mania tipicamente brasiliense. Mas não é só isso. Ela tem uma grande quantidade de empregos institucionais do lado leste e tipos edilícios de térreo mais um pavimento, do lado oeste, com comércio e serviços no térreo e serviços ou habitações — populares — nos pavimentos superiores. Por que essa configuração "pode" na Norte, mas "não pode" na Sul? Sem uma mudança estrutural, implicando uma radical transformação edilícia e de uso em ambos os lados da avenida, não há saída.

Há inegáveis qualidades da área tombada de Brasília, não só como o mais importante testemunho do modo moderno de fazer cidade no mundo, como pela excepcional característica dos seus atributos arquitetônicos fundamentais — dos seus prédios emblemáticos e dos espaços livres que definem. Contudo, desde sempre, a cidade é profundamente excludente. Num plano que vise ao seu desenvolvimento, a postura eticamente defensável é aquela que reconheça a necessidade de preservação de suas qualidades tanto quanto a necessidade de transformações em sua configuração que a tornem mais democrática. Conhecimento para tanto já foi produzido de sobra, mas as transformações esbarram na capacidade de implementá-las — os produtores de conhecimento não têm a força política para tanto. Porém, a história não está escrita. As forças progressistas podem mudar o jogo.

Arquiteto PhD em arquitetura, professor titular aposentado e professor emérito da Universidade de Brasília (UnB)

Mais Lidas