Opinião

Tubarões, cocaína e agrotóxicos

O caso dos resíduos químicos em tubarões propicia oportuna reflexão sobre as consequências da irresponsabilidade ambiental, justamente quando o STF deve decidir sobre as isenções fiscais conferidas às substâncias tóxicas de uso agrícola

Pulverização aérea de agrotóxicos -  (crédito: Reprodução/Pixabay)
Pulverização aérea de agrotóxicos - (crédito: Reprodução/Pixabay)

Leomar DaronchoProcurador do Trabalho

"Parece que o homem branco não sente o ar que respira."

Chefe Seattle

Publicação da revista Science of The Total Environment destaca estudo que detectou cocaína em 13 tubarões analisados na costa do Rio de Janeiro. Teria sido constatada maior concentração de cocaína no fígado e músculos de fêmeas.

Os resultados indicam concentração muito superior ao de estudos anteriores, com outras espécies marinhas. Os tubarões, carnívoros, provavelmente foram contaminados alimentando-se de crustáceos e peixes que ingeriram a droga no litoral carioca. A descoberta tem como explicação possível a alta quantidade de tóxicos consumida e descartada pelo esgoto.

Confirmando-se a hipótese, seria um dano marginal, ignorado pelos consumidores de entorpecentes, em que os animais marinhos funcionam como marcadores da qualidade ambiental. Os pesquisadores alertaram para a necessidade de estudos específicos sobre os efeitos do consumo de peixes contaminados em relação ao ser humano.

A pitoresca notícia instiga um manancial de gracejos, dando vazão à rica criatividade dos humoristas. Para efeitos do meio ambiente, o achado remete à concepção de que não existe descarte na natureza. Não existe a separação dentro e fora. Somos parte do todo. Degradamos o ambiente e sofremos as consequências, ignorando antigas lições.

Em 1854, o Chefe Seattle cravou: "O que ocorrer com a Terra recairá sobre os filhos da terra. Há uma ligação em tudo". Em 2015, o papa Francisco assinalou a preocupação com a ação humana sobre o clima da Terra, afirmando que "tudo está conectado" (Carta Encíclica, Laudato Si'). Em 1962, Rachel Carson, cientista que elaborou a ideia holística de meio ambiente para o grande público, registrou os efeitos de pesticidas (DDT) sobre os seres vivos: "O homem é parte da natureza, e a sua guerra contra a natureza é, inevitavelmente, uma guerra contra si mesmo".

São conhecidos e estudados os danos ao meio ambiente e as doenças, agudas e crônicas, de trabalhadores, comunidades e consumidores, decorrentes da exposição aos agrotóxicos usados na produção de commodities agrícolas de exportação, que avança sobre as áreas de preservação e substitui a produção de alimentos. A contaminação da água, do solo e de outros marcadores ambientais (abelhas, bicho-da-seda e onças) não é acidental, uma vez que o Brasil segue facilitando o uso de produtos banidos de países civilizados, justamente em razão da comprovada ação tóxica.

O caso dos resíduos químicos em tubarões que vivem na costa propicia oportuna reflexão sobre as consequências da irresponsabilidade ambiental, justamente quando o Supremo Tribunal Federal (STF) deve decidir sobre as isenções fiscais conferidas às substâncias tóxicas de uso agrícola — ação direta de inconstitucionalidade (ADI) 5.553/DF.

O complexo debate jurídico-constitucional dá-se a partir dos direitos fundamentais ao meio ambiente equilibrado, da saúde e do princípio constitucional da seletividade tributária, questionando a legitimidade da desoneração fiscal que facilita e induz ao uso de agrotóxicos.

A Procuradoria-Geral da República defendeu o fim da isenção de tributos, avaliando que os dispositivos que reduzem a base de cálculo do ICMS e concedem isenção de IPI não são compatíveis com a Constituição. Na mesma linha, manifestaram-se defensores da saúde, meio ambiente, consumidor e alimentação adequada.

A extrafiscalidade e o princípio da seletividade, no caso, impõem a atuação positiva do Estado brasileiro revendo os benefícios concedidos a produtos tóxicos. O ministro relator da ADI, Edson Fachin, posicionou-se nesse sentido, em entendimento que se harmoniza com o compromisso assumido pelos países com a agenda 2030 da ONU, que, segundo o STF, "envolve a adoção de medidas ousadas, abrangentes e essenciais para promover o Estado de Direito, os direitos humanos e a responsividade das instituições políticas".

O desestímulo às substâncias tóxicas, que não são essenciais à vida e produzem conhecidos agravos à saúde e ao meio ambiente, seria uma medida positiva de indução à pesquisa e aos investimentos para a transição gradual rumo a um modelo de desenvolvimento agrícola sustentável. Para o bem das gerações presentes e futuras, aguarda-se que prevaleça esse entendimento que vem orientando as decisões do STF em matéria ambiental.

 

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postado em 31/07/2024 06:00
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