Marcel Bursztyn e Saulo Rodrigues Filho — Professores do Centro de Desenvolvimento Sustentável da UnB e membros da Rede Brasileira de Estudos sobre Mudanças Climáticas Globais (Rede Clima)
A despeito das inúmeras tragédias humanas e perdas materiais, a sucessão de eventos climáticos extremos que têm se abatido sobre diferentes territórios no Brasil parece não ser suficiente para sensibilizar os decisores públicos e os predadores do meio ambiente. Muito pouco ou quase nada tem sido feito para evitar os dramáticos efeitos das mudanças climáticas.
Temos sido testemunhas passivas de enchentes e deslizamentos no Rio de Janeiro, em São Paulo e Santa Catarina, na Zona da Mata nordestina e no próprio Rio Grande do Sul. Tivemos secas históricas na Amazônia e na Caatinga. Esses eventos extremos têm se repetido cada vez mais intensamente e em intervalos mais curtos. Parece que o longo prazo está cada vez mais curto, já que os cenários apresentados pelos cientistas estão se manifestando antes mesmo da época em que se previa que ocorreriam.
Não é por falta de advertência…A ciência do clima avançou muito nas últimas décadas, graças à combinação de novas técnicas e informações disponíveis, que permitem a elaboração de modelos de simulação e previsão mais precisos e confiáveis.
Devemos lembrar que, desde os primórdios dos grandes alertas ambientais da segunda metade do século 20, a ciência tem lançado foco sobre riscos inerentes ao nosso modelo de produção. Este se apoia em pilares como as tecnologias que tratam a natureza apenas como provedora de recursos, sem considerar o seu importante papel regulador de serviços ambientais, o consumismo como fator de propulsão da economia e o desperdício (de matérias-primas e energia) como consequência desse modelo.
Quando um fazendeiro desmata grandes glebas de floresta para extrair rendimento monetário no curto prazo, ele parece considerar que seus vizinhos não farão o mesmo. O raciocínio é que consequências negativas de padrões de uso dos recursos naturais só virão num futuro tão distante que, até lá, já não nos afetará, pois alguma solução será encontrada. O resultado do descaso com o futuro é inevitável, e, obviamente, um desequilíbrio da função reguladora do clima, que é exercida pela floresta, pelo regime de chuvas, pela dinâmica dos oceanos. Na verdade, esse tipo de comportamento individual leva a uma tragédia coletiva.
Mas como agora se trata da crônica de uma tragédia recorrente, prevista e anunciada, vale a frase de Marx formulada há uns 180 anos: "A história se repete, a primeira vez como tragédia, e a segunda, como farsa". Não se pode dizer que não houve alerta. Faltou — e falta — entendimento de que, ainda que a ação de cada um seja uma pequena gota no oceano nas perturbações impostas à natureza, a soma de todas as ações gera um transbordamento, literalmente. Faltou — e falta também — vontade e determinação política. Regular a relação entre os humanos e o meio natural não pode ser simplesmente algo a ser esperado do bom senso de cada um. Bom senso é um componente necessário, mas longe de ser suficiente. O poder público e a sociedade civil organizada devem ser os grandes guardiões na proteção contra desastres e tragédias.
O cálculo econômico e político dos decisores, em que prevalece uma irresponsável desconsideração dos riscos às pessoas e às infraestruturas, não pode mais prevalecer sobre a razão, a previdência e a responsabilização. O tempo da política é curto (em geral, ciclos de quatro anos). O tempo das pessoas é muito mais longo. E o tempo da natureza é imenso. Isso significa que, quando políticos saem de cena, o ônus das perdas permanece sobre aqueles que os elegeram e, também, sobre os seus descendentes; e a resiliência dos serviços prestados pela natureza pode estar ultrapassando pontos de não retorno.
Enquanto os regramentos forem apenas proforma, estaremos cada vez mais diante da farsa: uns fingem que cumprem seu papel, outros fingem que tudo está sob controle e que o dano que causam é minúsculo, já que os vizinhos não agirão da mesma forma; e os problemas que aconteceriam lá no futuro remoto já estão batendo em nossas portas.
A pergunta que não quer calar é: quando nossos governantes e a sociedade entenderão que é muito mais razoável investir na prevenção da crise climática do que arcar com o custo de suas consequências?
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