Opinião

Por uma história de mapas trançados

Compreendo meu ofício de trancista como uma linguagem artística que liga elos transatlânticos aos nossos cotidianos diaspóricos, dentro dessa história negra fragmentada, onde a memória se materializa no fio das tranças

PRI-2707-OPINI -  (crédito: Maurenilson Freire)
PRI-2707-OPINI - (crédito: Maurenilson Freire)

Layla MaryzandraTrancista e mestranda no Programa de Pós-Graduação em Sustentabilidade junto a Povos e Territórios Tradicionais da UnB

Sou uma trancista que, nos últimos 12 anos, realizo pesquisas sobre iconografia das tranças africanas, memória e territórios negros na diáspora, práticas e ofícios tradicionais com intersecção entre raça, cidade e gênero e como isso se manifesta no trabalho das trancistas/trançadeiras. 

O que me deu arcabouço para iniciar a pesquisa sobre identificação patrimonial da prática de trançar — pela Universidade de Brasília, no Programa de Pós-Graduação em Sustentabilidade junto a Povos e Territórios Tradicionais (MESPT), iniciativa apoiada pelo Fundo de Apoio à Cultura (FAC) — intitulada Tranças no Mapa: modos de saber/fazer de trancistas negras do DF e Entorno.

A pesquisa utiliza a metodologia dos mapeamentos colaborativos e da cartografia social. A escolha por mapas se dá por diferentes caminhos, pois a função básica de um mapa é representar uma determinada realidade e comunicar tal informação para a sociedade — isto é, o mapa sempre tem uma intencionalidade.

As representações espaciais, mentais ou gráficas são parte fundamental da territorialidade de qualquer grupo social, e as trancistas fazem parte de um grupo. No entanto, a lógica colonial instaurada a partir do final do século 15 institucionalizou uma linguagem específica que serviu como importante artefato de dominação e subalternização por meio das representações espaciais, segundo Gouveia.

Ressalto que os mapas tidos como não convencionais (rupestres e antigas cosmografias), historicamente foram desconsiderados pela chamada cartografia moderna, desqualificando outras possibilidades de representação socioespacial por meio da linguagem visual. Todavia, Acselrad pontua que, a partir de 1990, diversos grupos marginalizados questionam o direito exclusivo dos órgãos oficiais de confeccionar as representações espaciais — lê-se mapa — e começam a reivindicar o direito de produzirem os próprios mapas.

Partindo desse exemplo, chamo a atenção para os desenhos geométricos e linhas retas feitas a partir da trança raiz, um penteado que a maioria das trancistas faz. Vista de cima, a trança raiz traduz uma linguagem cartográfica que pode identificar os sujeitos que a usam, mas não necessariamente a pessoa que a produziu. É interessante pensar sobre isso porque não existem dados socioculturais sobre as trancistas. Somos invisibilizadas. E, quando aparecemos, somos meras oficineiras em um 20 de novembro ou recaímos a um empreendedorismo que não alcança a perspectiva das práticas tradicionais, esvaziando o que dá sentido ao nosso trabalho.

Enquanto trancista e pesquisadora, transporto o desenho trançado da cabeça como alguém que retira o desenho do mapa de cima da mesa e o coloca no chão, para a materialidade, caminhando por ele, para ler o território, onde as histórias de vida dão forma à geração de dados e indicadores sociais, trançando um inventário participativo do patrimônio cultural da cidade, resguardado por nós, trancistas. E, agora, temos dados. 

O Distrito Federal é o território central do mapa. As tranças aqui não são desenhadas enquanto rota de fuga, como no século 16, realizadas por escravizadas negras para os palenques colombianos. Nesse projeto, utilizo as rotas trançadas como metáfora, as desenho em um mapa de chegada, o corpo — mapa que se localiza no patrimônio imaterial, interseccionando com o direito à memória negra.

Esse é um projeto que está intimamente relacionado à minha trajetória pessoal, pois me tornei trancista profissional aos 17 anos. Desde então, compreendo meu ofício como uma linguagem artística que liga elos transatlânticos aos nossos cotidianos diaspóricos, dentro dessa história negra fragmentada, onde a memória se materializa no fio das tranças — mapas.

Destaco que há poucos espaços para mulheres negras apresentarem suas iniciativas e, neste ano, o Latinidades — o maior festival de mulheres negras da América Latina, que tem chão candango — chega a sua 17ª edição com o chamado Vem ser fã das mulheres negras e convoca o Tranças no Mapa a fazer parte desse mosaico de saberes que integram os diálogos e as ações do festival.

Ressalto que o tema do festival deste ano cria oportunidades para o reconhecimento e a celebração da força transformadora das mulheres negras nos diferentes campos do conhecimento. No caso da pesquisa, estarei contribuindo para a superação dessa visão erótica e exótica do corpo negro, reeducando a sociedade no seu olhar sobre como mulheres negras trançadeiras formulam conhecimentos por meio de mapas e cartografias sociais que apontam para outras histórias que ainda não são vistas. 

Por fim, ressalto que construo diferentes camadas cartográficas buscando decodificar caminhos para salvaguarda e valorização do nosso ofício, para que não apenas resista à desigualdade racial e social, mas que tenha soluções práticas e criativas de afirmação cultural e de mobilização social.

 

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postado em 27/07/2024 06:00
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