Opinião

Vidas secas: sentimentos podem florescer na aridez?

Em Vidas secas, podemos perceber que as personagens têm dificuldade não apenas em entender o que estão sentindo, mas também em interpretar as reações das outras pessoas. E como isso é assustador!

Cena de O país de São Saruê: sertanejo colhendo algodão em imagem crua -  (crédito: Reprodução)
Cena de O país de São Saruê: sertanejo colhendo algodão em imagem crua - (crédito: Reprodução)

Helena Moura — professora da Faculdade de Medicina da UnB e membro do grupo de geopsiquiatria da Associação Mundial de Psiquiatria

As personagens da obra de Graciliano Ramos parecem ser tão ásperas quanto o terreno em que pisam. A pobreza de palavras, ideias e de habilidades em expressar suas emoções, muitas vezes se restringindo à agressividade, contrasta apenas com as reflexões e afetuosidade da cachorrinha Baleia. Entretanto, a sensibilidade do autor nos revela uma camada mais profunda onde germinam o medo, a vergonha, esperança... É possível que tenhamos diferentes estágios emocionais? Como a neurociência explica essa questão?

Para o renomado neurocientista António Damásio, a formação dos sentimentos foi uma etapa importante para a evolução da nossa espécie, pois eles possibilitam a regulação do nosso comportamento. Como isso acontece?

Primeiramente, vamos entender a diferença entre emoções e sentimentos. As primeiras se referem às mudanças fisiológicas em nosso organismo decorrente de um estímulo externo (ou lembrança dele). Um estímulo ameaçador, por exemplo, leva à liberação de hormônios de estresse, aumento da frequência cardíaca e outras mudanças corporais para nos preparar para enfrentar o perigo (ou fugir dele)! Contudo, isso não necessariamente pode gerar um estado consciente de medo. Quando isso acontece, aí, sim, temos o que ele chama de sentimento. Essa distinção destaca como o corpo e a mente interagem para formar a experiência emocional completa. 

Percebam, portanto, que sentir não é um processo inato e automático, mas que envolve aprendizado. Fatores como baixa escolaridade, baixa renda e exposição a traumas estão associados a prejuízos cognitivos e emocionais que dificultam esse processo. A vida de Fabiano e Sinha Vitória, reflexo da sociedade e ambiente em que viviam, representa bem isso. Para além das habilidades individuais, normas culturais e práticas sociais modulam a intensidade e a expressão dos sentimentos, dando-lhes contextos e significados específicos. É por isso que "cabra macho" não chora. 

O problema de não conseguir interpretar claramente nossas emoções é que isso nos deixa mais vulneráveis ao adoecimento mental. Indivíduos com mais dificuldade em sentir sofrem de um problema conhecido como alexitimia. Há várias décadas, a alexitimia vem sendo apontada como um dos fatores de risco para o alcoolismo e abuso de outras substâncias, sob a justificativa de que é mais fácil lidar com sensações já esperadas e "sob demanda", mesmo as desconfortáveis, que lidar com as emoções inesperadas que surgem em resposta aos improvisos da vida. 

Em Vidas secas, podemos perceber que as personagens têm dificuldade não apenas em entender o que estão sentindo, mas também em interpretar as reações das outras pessoas. E como isso é assustador! A obra nos faz mergulhar nessa confusão em vários momentos e, com frequência, temos dificuldade em distinguir fantasia de realidade, pensamento de ações. É isso que um pobre "letramento emocional" pode causar.

Em contrapartida, Lisa Barrett, outra estudiosa das emoções, criou o termo "granularidade emocional" para se referir à capacidade de diferenciar e rotular experiências emocionais de maneira precisa e específica. Pessoas com alta granularidade emocional conseguem distinguir um espectro maior de emoções e são capazes de sentir a diferença entre estar irritado, frustrado ou furioso, enquanto pessoas com baixa granularidade emocional tendem a ter uma compreensão mais vaga e difusa de suas emoções, como simplesmente sentir-se mal ou bem. Isso permite a geração de respostas mais adaptadas e reduz o risco de adoecimento mental. Quando sentimos claramente o medo, por exemplo, podemos associá-lo à situação que o provocou e passar a evitá-la ou aprender como lidar com ela. 

A boa notícia é que podemos desenvolver melhor nossa capacidade de sentir. Cada vez mais, estratégias voltadas à regulação emocional têm sido desenvolvidas e empregadas na prática psicoterápica. Meditação também tem se mostrado uma ferramenta útil nesse processo. Um estudo publicado na Scientific Reports em 2018 mostrou que treinamento em atenção plena, ou mindfulness, induziu o aumento da conectividade na ínsula, região do cérebro importante para a interpretação das emoções. 

Um ponto interessante: a habilidade de sentir se dá predominantemente no córtex, uma área mais complexa e desenvolvida do cérebro, enquanto as emoções vêm de áreas mais primitivas. Entretanto, essa habilidade não se restringe ao córtex. Isso sugere que os sentimentos não são exclusividade dos humanos e nem mesmo dos mamíferos!

Mais uma vez, percebemos a genialidade de Graciliano Ramos. As representações dos sentimentos de Baleia, afinal, não eram apenas licença poética.

 

 

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postado em 23/07/2024 06:00
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