Isabel B. Schmidt*
O Projeto de Lei nº 1.818/2022, da Política Nacional do Manejo Integrado do Fogo, foi aprovado em 3 de julho pelo Senado e segue para sanção presidencial. Em meio a tantas más notícias ambientais, essa é excelente. A política tem por objetivos disciplinar e promover a articulação entre instituições pelo manejo integrado do fogo, reduzir a incidência e os danos dos incêndios florestais, e a restauração do papel ecológico e cultural do fogo. O objetivo de reduzir incêndios é fácil de entender, mas o que é o papel ecológico e cultural do fogo? O que é manejo integrado do fogo?
Desde que os humanos aprenderam a controlar o fogo, ele é parte essencial da nossa existência, tem papel cultural na produção agropecuária e no manejo de ambientes para evitar incêndios. Sim, o fogo bem manejado é muito útil e eficaz para evitar incêndios nos campos e savanas, como no Cerrado, nos campos sulinos e amazônicos e no Pantanal — que arde em chamas pela segunda vez, só nesta década. Esses ambientes, chamados tecnicamente de pirofíticos, convivem com o fogo natural, iniciado por raios, há milhões de anos. Neles, a sazonalidade (seca e chuva) e a camada contínua de capins facilitam a propagação do fogo. Basta uma faísca na época seca para o fogo descontrolado (incêndio) se alastrar por milhares de quilômetros quadrados, abastecido pelo "combustível" das finas folhas dos capins, e ser empurrado pelos ventos.
O fogo natural inicia-se apenas por raios no Cerrado, que chegam com as chuvas, sendo que estas apagam os incêndios naturais. Nós, humanos, causamos mudanças irreversíveis nos ecossistemas e no clima da Terra e geramos ignições em momentos e lugares em que jamais aconteceriam naturalmente, tornando incêndios mais frequentes, artificiais e difíceis de controlar.
Chegamos, então, ao manejo integrado do fogo (MIF). O MIF é uma abordagem de manejo de ambientes baseada em três pilares: a ecologia do fogo — ocorrência natural (ou não) no ambiente a ser manejado; a cultura do fogo — se e como as populações locais usam o fogo para atividades produtivas e culturais; e o manejo do fogo, que considera as capacidades institucionais e o conhecimento técnico e científico para usar o fogo e prevenir incêndios.
Apesar de ser empregado há décadas em várias regiões da África, Austrália, Europa e América do Norte, o MIF só chegou ao Brasil em 2014. Desde então, instituições federais (Prevfogo/Ibama, ICMBio e Funai) fazem manejo de fogo em mais de 10 milhões de hectares de áreas protegidas federais, onde os incêndios têm diminuído drasticamente nos últimos anos.
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Um dos segredos desse sucesso está no bom planejamento, execução e monitoramento de queimas prescritas (planejadas) em locais estratégicos. Essas queimas criam mosaicos com diferentes históricos de queima na paisagem, como uma colcha de retalhos, em que cada pedaço tem uma quantidade de combustível (capim seco) diferente. Muitos não têm combustível suficiente para que um incêndio continue. Assim, milhares de quilômetros deixam de queimar por não haver continuidade de combustível diante do primeiro raio, ou pior, e mais comum, o primeiro isqueiro.
Essas queimas prescritas, feitas em campos e savanas, protegem áreas de matas e florestas que sofrem com qualquer fogo. Em resumo, o MIF considera conhecimentos ecológicos e tradicionais para manejar ambientes propícios aos incêndios, reduzindo a continuidade do combustível. Assim, não precisamos contar com a sorte para não haver nenhuma ignição, e os incêndios acabam "morrendo de fome" por falta de combustível (capim seco).
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Quebrar o paradigma do fogo zero e parar de tentar evitar todo e qualquer fogo foi um longo processo nas reservas federais. Depois de muito resistir, os gestores aprenderam que o fogo é um péssimo patrão — nos faz trabalhar a qualquer hora e em condições desumanas para combater incêndios. Mas é ótimo empregado, demandando relativamente poucos recursos financeiros e humanos para cuidar de grandes regiões com áreas queimadas de diferentes tamanhos, que protegem ecossistemas, propriedades e vidas de incêndios.
A Política Nacional do MIF é o arcabouço que permitirá que essa forma de manejo seja implementada em todo o país, em terras estaduais, municipais e privadas, com informação e formação. Precisamos, agora, de empenho institucional, político e social para se entender que incêndio pode ser evitado com fogo bem manejado. E que tentar combater incêndios custa muito mais caro econômica, social e ambientalmente do que investir no manejo.
Professora do Departamento de Ecologia/UnB e integrante da Rede Biota Cerrado; Livia C. Moura — Integrante do Instituto Sociedade, População e Natureza (ISPN) e da Rede Biota Cerrado.
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