Por Cristovam Buarque*
A primeira qualidade de um livro é deleitar ao leitor. Rubens Ricupero consegue a façanha da primeira à última das 700 páginas de seu livro Memórias, publicado pela Editora da Unesp.
A segunda é contar boa história de vida. Ricupero lembra o nascimento, resultado da ousadia migratória dos quatro avós desde a Itália. Descreve sua infância em bairro pobre na cidade de São Paulo. Conta a saga de um homem que viveu a aventura de seu tempo como estudante, diplomata, estadista, professor, autor e cientista de relações internacionais.
A interligação da biografia com a história é a terceira qualidade do Memórias. Ao ler, vamos colecionando informações sobre o que se passou ao longo dos 87 anos em que sua vida coincidiu com a história do Brasil e do mundo no incrível período de meados do século 20 à terceira década do 21. Uma vida entrelaçada com o período histórico do pós-guerra até o atual mundo global integrado e dividido.
O livro tem a quarta qualidade de nos apresentar grandes personagens, lugares especiais e ideias marcantes. São mais de mil personagens com as quais sua vida se entrelaçou: autores do passado ou contemporâneos, estadistas, políticos, artistas, amigos, colaboradores e colegas, alguns muito conhecidos, outros anônimos, que ele cuida com respeito e carinho. Sobre cada um, Ricupero tem uma história para contar e um reconhecimento a fazer.
Mas, dificilmente, temos memórias interessantes se o autor não conta fatos importantes dos quais participou. O Memórias tem essa quinta qualidade: muito jovem, Ricupero participou da concepção da nossa política externa independente, assistiu por dentro à renúncia de Jânio Quadros, junto a San Tiago Dantas viu o regime parlamentarista em funcionamento, esteve presente em momentos decisivos das relações do Brasil com a Argentina, acompanhou Tancredo Neves no giro internacional depois da eleição para presidente, marcou o mundo como secretário geral da Comissão das Nações Unidas para o Comércio, a Indústria e o Desenvolvimento, foi ministro do Meio Ambiente e da Amazônia quando o mundo e o Brasil começavam a tomar conhecimento desses temas. E, sobretudo, foi o ministro da Fazenda que coordenou a implantação do Plano Real. Sua vida está ligada à vitória contra a inflação endêmica no Brasil, nosso maior equívoco e empecilho ao progresso, depois da escravidão e da desigualdade educacional.
Além dessas cinco qualidades, dificilmente um livro de memórias tem grandeza sem tragédia. Apesar da sua vida feliz, Ricupero descreve o drama na noite em que ele, em momento relaxado no estúdio de televisão, disse a frase que nada tinha do que ele sentia, em nada sintonizada com seu caráter e sua maneira de ser, mas gravada por acaso, vista inesperadamente, divulgada indiscretamente, que o transformou de "santo do real" em um "demônio da política". A descrição dessa tragédia, a candura como a analisa, 30 anos depois, é a sexta qualidade do Memórias.
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Bom livro de memórias exige também uma boa história de amor. Isso não falta no Memórias de Ricupero. Ele declara seu amor por Marisa, companheira de todo tempo, conselheira em cada momento, impedindo, como ele descreve, erro que estava prestes a cometer; amor ao Brasil, à Itália, à cidade de São Paulo, à cultura, ao Instituto Rio Branco, a Brasília, da qual ele foi um dos pioneiros; assim como aos avós, pais, filhos e netos.
Memórias de Ricupero tem a sétima qualidade de revelar sentimentos íntimos que ele transmite ao reconhecer períodos de depressão, expressar sua espiritualidade cristã e seu sofrimento com a pobreza e com a desigualdade social.
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A oitava qualidade, rara em outras memórias, é concluir a descrição da vida apontando para o futuro, na esperança de um mundo melhor. Ele deixa entrever a necessidade de uma nova diplomacia. Ricupero é um dos primeiros diplomatas no mundo que percebe o fato de que, atualmente, "cada país é um pedaço do mundo", diferentemente do tempo em que o "mundo era a soma de países". Ele faz parte daqueles ainda raríssimos diplomatas, como André Aranha Corrêa do Lago, secretário de Clima, Energia e Meio Ambiente, no Itamaraty, que defendem o seu país sem esquecer que ele é parte do mundo ao qual estamos ligados. O Memórias lembra o nacional apontando para o futuro planetário. Não é por acaso que repete (páginas 598 e 612) o poema de Khalil Gibran: "A Terra é minha pátria, a humanidade é minha família".
O Memórias de Ricupero tem todas as oito qualidades que se deseja em um bom livro sobre a vida do autor: deslumbra, descreve, ensina, informa, aproxima, sensibiliza, declara, inspira. E lembra que tudo foi resultado da boa educação que recebeu.
*Cristovam Buarque é professor emérito da Universidade de Brasília
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