Reforma tributária

Artigo: Passeios com Bento

As discussões sobre a Reforma Tributária em curso deixam de lado uma aproximação mais abrangente em termos de democracia fiscal e legitimidade do Estado

Calculadora e caneta, contas, impostos -  (crédito: Pixabay/Pexels)
Calculadora e caneta, contas, impostos - (crédito: Pixabay/Pexels)

Bertrand Douet* 

Na aula magna da Reitoria da Universidade de Lisboa, ainda ecoavam os debates dos três dias intensos do XII Fórum Jurídico de Lisboa quando apareceu uma sombra — ou melhor, o vulto de uma capa rasgada. Era o espírito de Baruj Spinoza, filósofo-mor de origem portuguesa, que chamavam em casa, afetuosamente, de Bento.

Nosso visitante espiritual sofreu em vida um atentado que quase acelerou a sua passagem para outro mundo. Conservou a capa rasgada como recordatório de cautela, que virou seu lema: caute. Cautela particularmente contras as paixões tristes, ou negativas, aquelas que se opõem ao desenvolvimento de nossa energia vital, da nossa potência de agir.

Pairava, assim, a exigência de transformar os debates em ações concretas, em prol do corpo social, da justiça e do bem-estar. Talvez seja a melhor forma de resumir o que se ouviu naquela aula magna. Nesse passeio com Bento, vamos eleger uma central para a justiça social: o consentimento ao tributo. Haja paixão triste! Como passar da imposição ao consentimento?

O consentimento ao tributo é um princípio fundamental no direito tributário, que se baseia na ideia de que os cidadãos devem estar dispostos a contribuir de forma voluntária, por entenderem que esses recursos serão utilizados de forma justa e equitativa pelo Estado. Esse conceito está diretamente ligado à noção de democracia fiscal, defendida por autores como James Buchanan e Richard Musgrave.

Para Buchanan, a democracia fiscal é a capacidade dos cidadãos de participarem das decisões sobre a utilização dos recursos públicos, incluindo a definição das alíquotas e a distribuição dos impostos. Já Musgrave defende que o consentimento ao tributo é fundamental para a legitimidade do Estado e para a manutenção da ordem social.

Outro autor que contribuiu para o entendimento do consentimento ao tributo é John Rawls, que, em sua Teoria da Justiça, defende que os impostos devem ser utilizados para promover a igualdade de oportunidades e para reduzir as desigualdades sociais. Para Rawls, o consentimento ao tributo é uma forma de garantir que os cidadãos se sintam representados nas decisões sobre a utilização dos recursos públicos.

Nos Estados Unidos, o consentimento ao tributo é incentivado por meio da transparência fiscal, com a divulgação de informações detalhadas sobre a utilização dos recursos públicos. Além disso, o país tem adotado políticas para reduzir a evasão fiscal, como o Foreign Account Tax Compliance Act (FATCA), que exige que os bancos estrangeiros informem as contas de cidadãos americanos no exterior. Essas medidas visam garantir que todos os cidadãos contribuam de forma justa e equitativa com os impostos.

A Suécia é um exemplo de país em que o consentimento ao tributo é muito alto. Isso se deve, em grande parte, à transparência fiscal e à confiança dos cidadãos nas instituições públicas. Além disso, o país tem adotado políticas para garantir que os impostos sejam utilizados de forma eficiente e equitativa, como a Lei do Imposto de Renda, que estabelece uma taxa progressiva de imposto de renda, na qual quem ganha mais paga mais. Essa política visa reduzir as desigualdades sociais e promover a justiça fiscal.

O Brasil tem adotado políticas para incentivar o consentimento ao tributo, como a Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF), que estabelece regras para a gestão dos recursos públicos e prevê a participação da sociedade civil na fiscalização das contas públicas. Além disso, o país tem investido em programas de educação, como o Cidadão Fiscal, que visa esclarecer a população sobre os direitos e deveres tributários e sobre a importância dos impostos para a manutenção dos serviços públicos.

Chama a atenção, então, que nas discussões sobre a Reforma Tributária em curso o foco esteja no cabo de guerra entre entidades federativas, setores econômicos e grupos de interesse, deixando de lado uma aproximação mais abrangente em termos de democracia fiscal e legitimidade do Estado. Para que os cidadãos estejam dispostos a pagar impostos de forma voluntária, é necessário que eles tenham confiança nas instituições públicas e que entendam que os recursos serão utilizados de forma justa e equitativa. Caute.

*Sócio do Grupo Assertif 

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postado em 16/07/2024 06:00
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