urbanismo

Nem preservação, nem desenvolvimento, nem sustentabilidade: o caso PPCUB

A história nos diz que o DF merece um território preservado e um futuro mais sustentável. No entanto, o PPCUB aprovado pela CLDF vai no sentido contrário desse histórico

Lago Paranoá é um dos berços do esporte no DF. No domingo (26/5), recebe provas de águas abertas -  (crédito: Fred Danin/@freddanin)
Lago Paranoá é um dos berços do esporte no DF. No domingo (26/5), recebe provas de águas abertas - (crédito: Fred Danin/@freddanin)

Marta Adriana Bustos Romero — professora tiitular da FAU-UnB, professora emérita da UnB. Laboratório de Sustentabilidade Aplicada à Arquitetura e Urbanismo - LaSUS

Para a localização da nova capital do Brasil, procurou-se superar os problemas das cidades sem planejamento, baseando a seleção do sítio em fatores econômicos e científicos, bem como nas condições climáticas e na beleza. O sítio Castanho, o escolhido, é um sítio convexo, aberto a todas as influências dos ventos predominantes e tem uma forma topográfica ideal para promover a drenagem do ar no espaço da cidade. 

Apesar desse contexto sócio-histórico e cultural, o Projeto de Preservação do Conjunto Urbanístico de Brasília (PPCUB) ignora o legado do urbanista idealizador de Brasília, Lucio Costa, que, no item 2 do Relatório do Plano Piloto de Brasília, informava: "Procurou-se a adaptação à topografia local, ao escoamento natural das águas, à melhor orientação". No item 20 do mesmo documento, Lucio Costa explica o afastamento do Lago: "Evitou-se a localização dos bairros residenciais na orla da lagoa, a fim de preservá-la intacta, tratada com bosques e campos de feição naturalista e rústica para os passeios e amenidades bucólicas de toda a população urbana. Apenas os clubes esportivos, os restaurantes, os lugares de recreio, os balneários e núcleos de pesca poderão chegar à beira d'água." 

Adotava o urbanista, com base nesses itens, o que hoje denominamos medidas preventivas emergentes de planejamento urbano e de proteção ambiental, para ventilar e resfriar o espaço aberto da cidade e a pele envoltória dos edifícios na direção predominante do vento Leste vindo do Lago Paranoá.

Medidas preventivas como essas mostram-se urgentes, hoje, dada a preocupante proposta do PPCUB aprovado para aumentar a massa construída na área tombada, enquanto as evidências mostram que as áreas de Brasília mais aquecidas, menos úmidas, ou seja, nas quais faz mais calor, incluem regiões mais adensadas. Convém lembrar que, quanto maior a visão do céu de uma superfície urbana em função do maior espaçamento entre as edificações, maior será o resfriamento, essencial nestes tempos de mudanças climáticas em que vivemos. As superquadras de ocupação mais recente, assim como os novos bairros do Plano Piloto, não apresentam a mesma leitura espacial dos mais antigos: a vegetação é menos densa e padrões compositivos sem sombra. O progressivo alargamento das lâminas dos blocos (12,5m em 1967; 18m em 1998) favorece o acúmulo de calor devido ao aquecimento do solo e das superfícies verticais das edificações.

O aquecimento urbano e a ilha de calor urbano, na escala local, podem ser exacerbados por eventos climáticos extremos, como a onda de calor, e pelas mudanças do clima, e Brasília não se furta a essa situação. O portal Lobelia Earth, que acompanha como capitais e populações sofrerão devido ao maior incremento do estresse térmico, indica que, entre as capitais sul-americanas, Brasília lidera, no período de 2030 a 2070. O PPCUB, recém-aprovado, poderia auxiliar a capital federal a reduzir suas emissões, mas, muito pelo contrário, ao permitir o parcelamento de áreas de maior sensibilidade ambiental, contribui para seu agravamento.

Desenvolvimento local não é sinônimo de ocupação: a urbanização de Brasília entre 2013 e 2019 suprimiu a vegetação nativa fora das unidades de conservação e, assim, hoje temos que 61% do Cerrado remanescente suprimido foram substituídos por uso urbano. O verdadeiro desenvolvimento envolve, pelo menos, o suporte de evidências científicas que apontam aumento de calor na capital para o qual existem medidas de mitigação, porém, ignoradas na aprovação do PPCUB, como, por exemplo, a ampliação, manutenção e preservação do verde urbano, e a disponibilização de atividades produtivas fora da área tombada. 

Hoje, o verde é orientado por questões universais relacionadas às mudanças climáticas e aos serviços ecossistêmicos em áreas naturais e urbanas. Esteve presente desde a gênese do projeto da capital, associado à identificação de escalas, à característica bucólica e à transição do edificado para o não edificado. A história nos diz que o DF merece um território preservado e um futuro mais sustentável. No entanto, o PPCUB aprovado pela CLDF vai no sentido contrário desse histórico.

O verdadeiro desenvolvimento sustentável exige especial cuidado com elementos do espaço, para não descaracterizar nosso Patrimônio da Humanidade, fruto da utopia moderna, da convivência harmônica entre o natural e o artificial, da coexistência de espaços públicos e de unidades privadas para inserção dos parâmetros essenciais à forma urbana: vegetação, insolação e ventilação. Em definitivo, esses elementos outorgam ao solo urbano de Brasília o desejado uso e ocupação de uma forma social, democrática, acessível e exemplar para este século, ao mesmo tempo em que destacam os edifícios que conferem a Brasília uma forte legibilidade e lhe permitem se sobressair na constituição da memória de seus habitantes, ou de seus visitantes, tornando-a inesquecível.

*Marta Adriana Bustos Romero é professora titular da FAU-UnB, professora emérita da UnB. Laboratório de Sustentabilidade Aplicada à Arquitetura e Urbanismo (LaSUS)

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postado em 07/07/2024 07:00 / atualizado em 08/07/2024 15:43
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