ARTIGO

A política, a ciência e os 30 anos do real

O real é a política pública mais bem-sucedida dos últimos 40 anos. A sua concepção e coexistência em um ambiente político totalmente democrático é uma das razões desse status

o Endividamento das famílias atingiu 78,8% em maio -  (crédito: PublicDomainPictures por Pixabay)
o Endividamento das famílias atingiu 78,8% em maio - (crédito: PublicDomainPictures por Pixabay)

BENITO SALOMÃO — Professor do Instituto de Economia e Relações Internacionais da Universidade Federal de Uberlândia (IERI-UFU)

Em 1° de julho de 2024, o Brasil comemorou os 30 anos do Plano Real, o pacote econômico que debelou a inflação após mais de uma década de descontrole e tentativas malogradas de resolvê-la. O real foi a décima moeda brasileira e a terceira mais longeva. Apenas o real português (de 1568 a 1833) e o réis (de 1833 a 1842) vigoraram por mais tempo do que o atual real. A história monetária brasileira é repleta de idas e vindas, e, apenas no século 20, o Brasil experimentou nove padrões monetários. Em termos da história mais recente da economia brasileira, pode-se considerar o real como sendo a política pública mais bem-sucedida dos últimos 40 anos, o que torna seu 30° aniversário uma data de fato a ser celebrada. Mas, o que dá ao real tal status de uma política tão bem-sucedida?

Em primeiro lugar, a sua concepção e coexistência em um ambiente político totalmente democrático. As moedas anteriores, vigentes durante a república oligárquica e as diferentes ditaduras que vigoraram no Brasil ao longo do século 20, eram alvo de descontroles macroeconômicos, causados por decisões políticas que não eram penalizadas por repassar seus custos aos mais pobres por via da inflação. Em regimes autoritários, quando o governo não é restringido pela opinião de suas populações, decisões podem ser tomadas independentemente dos seus custos recaírem sobre a maioria da população. Isso não pode acontecer em democracias, pois governos que tomam tais decisões são punidos ou pelo voto, ou por instrumentos constitucionais como o impeachment.

Essa não é uma questão menor. O fato de o problema inflacionário ter entrado na pauta política na segunda metade dos anos 1980 e solucionado na década de 1990, e não nos anos anteriores, estava relacionado ao fato de que, em havendo um calendário eleitoral regular, onde o direito ao sufrágio era universal (pela primeira vez, na nossa história), criaram-se os incentivos para que as decisões políticas no sentido de corrigir a inflação fossem tomadas. Tais incentivos não estavam postos durante os regimes mais autoritários que o país viveu no século 20.

O sucesso do real, por sua vez, se deveu a uma conjunção rara de fatores. Em primeiro lugar, o fato de a inflação ter se arrastado como um problema por mais de uma década criou, na opinião pública, um certo sentido de urgência, que serviu como anuência política para os atores envolvidos tomarem as decisões. No tocante a tais atores, o real foi fruto de uma rara combinação de uma equipe técnica que dominava academicamente a fronteira do conhecimento sobre inflação naquele momento, somado a um ator político com leitura em economia e firmeza para afiançar politicamente o plano junto às instâncias deliberativas do país.

Essa combinação de política e ciência não é um fator menor no sucesso do real, o Brasil teve, na sua história, outros momentos em que grandes pensadores em economia serviram ao governo, porém sem o mesmo êxito, pois faltava-lhes respaldo político. Essa conjunção da melhor política com a ciência de fronteira não mais aconteceu nas décadas que sucederam ao real — talvez, não aconteça nunca mais. Talvez tenhamos visto algo parecido a isso no que diz respeito à política social durante a passagem dos anos 1990 para o 2000. A história pode julgar.

O partido político que abrigava as lideranças responsáveis pelo desenho do real ganhou duas eleições após a entrada em vigor da nova moeda. Depois disso, nunca mais voltou ao poder, sendo sucedido por diferentes agremiações políticas à direita e à esquerda que alternavam no poder preservando a estabilidade conquistada pelo real. Isso sinaliza que, mais do que um amadurecimento democrático, a estabilidade da moeda galgou status de bem público no Brasil. Os guardiões da moeda não são políticos, burocratas ou acadêmicos lotados em algum gabinete em Brasília, mas, sim, milhares de pessoas (eleitores) que se beneficiam da estabilidade dos preços. Celebrar o Plano Real, portanto, significa celebrar a própria democracia.

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postado em 08/07/2024 06:00 / atualizado em 08/07/2024 06:00
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