IRAPOAN NOGUEIRA FILHO — Psicólogo, cientista, professor da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro
Em 2022, passamos por mais um Censo Demográfico. Sua realização ocorreu por meio da aplicação de questionários a toda a população no território nacional, feita por profissionais contratados e treinados pelo IBGE, exclusivamente para essa finalidade, por meio de concurso público. Os dados levantados pelo Censo são usados para produzir um retrato da população de cada localidade, bem como suas respectivas paisagens socioeconômicas. Assim, é possível perceber mudanças socioeconômicas locais, e também identificar como a população se distribui pelo território nacional. Isso é importante para o planejamento de políticas públicas governamentais em todas as esferas.
Esse último Censo trouxe uma novidade: pela primeira vez, a maioria dos entrevistados identificou-se como negra (compreendendo entre os negros, pretos e pardos). Houve 92,1 milhões de pessoas que se autodeclararam pardas, o que corresponde a 45,3% da população do país. Outras 20,6 milhões se declaram pretas (10,2%). Somando, temos então 55,5% da população brasileira reconhecendo-se negra. Entre o Censo de 1991 e esse último, a população negra mais que dobrou. Esse aumento não está ligado a taxas de natalidade, conforme análises já em andamento. Nesse autorretrato que é o Censo, o Brasil olhou para si e se viu negro. E se declarou negro. E esse dado é interessante para pensarmos a produção de subjetividades negras.
A subjetividade é uma maneira de relacionar-se com o mundo que cria, ao mesmo tempo, um modo de viver esse mundo e um modo de viver a si mesmo. Ela é produzida a todo momento em nossas relações enquanto seres que vivem num meio socioambiental. Por exemplo, eu não me tornei um homem negro simplesmente me olhando no espelho. Foram as atitudes racistas de professores que, ao me olhar pela primeira vez, atribuíam a mim o estereótipo de mau estudante. Foi quando eu reparei que sempre era seguido por seguranças no mercado. Foi na conversa que meu pai teve comigo sobre como reagir a abordagens policiais.
Não são apenas as distintas experiências que nos tornam pessoas negras, mas também — e sobretudo — nossas ações e atitudes frente a essas experiências. No crescer habituando-se a certos tipos de sofrimento que nos são impostos. Nas criações de jeitos de agir, de cumprimentar, de circular pela cidade. Nos modos de andar na rua ao perceber a aproximação de um policial. Nos modos de entrar em um lugar e perceber, quase automaticamente, o número de pessoas negras presentes. Essas subjetividades negras se manifestam nos diferentes jeitos de almoçar em família ao redor de uma matriarca, nossos modos de festejar, de partilhar, de celebrar, de nos apoiarmos mutuamente... Existir, crescer enquanto pessoa negra é existir em uma coletividade negra.
Crescer como pessoa negra é, então, crescer sendo forjado — e forjando — essa coletividade. A relação entre as pessoas negras e sua própria negritude é uma relação de coconstrução recíproca, transpassada pelo sofrimento imposto pelo racismo estrutural, bem como pelo desejo, pessoal e coletivo, de uma vida bela. É nessa coconstrução que surgem artefatos culturais (como festas, receitas culinárias, moda) e modos de viver entre os outros. Assim como modos de habitar o próprio corpo. E isso confere à negritude brasileira um caráter de constante transformação de si e do Brasil. Logo, os movimentos de vida de uma pessoa negra abrem caminhos para aqueles que vêm depois.
E esse aspecto descrito no parágrafo anterior é justamente a potência da negritude enquanto coletividade nesse país que culturalmente ainda pensa o "defeito de cor". Nesse país que já pensou e praticou limpeza étnica. Nesse Brasil que sistematicamente ataca vidas negras. A negritude brasileira avança, cria a si mesma e transforma o país.
Criamos um Brasil que é bem diferente daquele de 30 anos atrás. Hoje, temos um Brasil com espaços que celebram a negritude. E isso torna possível que 55,5% das pessoas brasileiras se olhem no espelho e se vejam negras e se declarem negras.
Queriam nos extinguir. Hoje, somos oficialmente a maioria. Nós ganhamos essa batalha. Agora, temos de exigir das esferas governamentais e privadas dentro do país que pensem o Brasil como um país majoritariamente composto por pessoas negras e de classe trabalhadora. Ajamos!
Gostou da matéria? Escolha como acompanhar as principais notícias do Correio:
Dê a sua opinião! O Correio tem um espaço na edição impressa para publicar a opinião dos leitores pelo e-mail sredat.df@dabr.com.br