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Safra 1944

Chico Buarque, Sebastião Salgado, Paulo Sérgio Pinheiro, Jurandir Freire, Frei Betto e João Câmara fazem parte da safra especial de brasileiros nascidos em 1944

Opinião 0207 -  (crédito: Caio Gomez)
Opinião 0207 - (crédito: Caio Gomez)

CRISTOVAM BUARQUE — Professor emérito da Universidade de Brasília

Ao convidar um colega para tomar um vinho em sua casa, um parlamentar reconhecido perguntou em que ano o convidado havia nascido. Ao ouvir 1944, disse: "Péssimo ano, vou escolher outra safra". É possível que tivesse razão em relação a vinhos, mas erraria se falasse da safra de brasileiros.

Imaginemos o Brasil sem Chico Buarque, nascido em 1944. Haveria um imenso vazio na cultura brasileira, especialmente na música popular. O mundo não contaria com alguns dos mais belos poemas da língua portuguesa. Sua obra tem tanta qualidade que é difícil escolher qual de suas composições deixaríamos de lado ao escolher as melhores. Outros compositores têm músicas de qualidade que emocionam, mas nenhum tem um conjunto tão pleno de emoções e tão variadas. Chico é o Pelé da música popular brasileira, merece ser chamado de Rei. Além disso, nos deu bons romances, peças de teatro e uma vida de coerência cidadã sempre ao lado da justiça social.

Sebastião Salgado, o mais conhecido fotógrafo contemporâneo no mundo, que inovou no tema e na forma, também é de 1944. Ele é o primeiro fotógrafo a ver e entender cada país como pedaço do mundo, e não o mundo como a soma dos países. Um humanista brasileiro que fotografa o planeta e a humanidade, com estilo próprio que, muitas vezes, emociona como pintura sem deixar de ser fotografia. Seus ensaios sobre a natureza, migrantes, trabalhadores e povos originários registram a coabitação do Homo sapiens com a mãe Terra na civilização contemporânea. Seu Gênesis é uma coletânea de fotos que mostra o mundo na passagem entre os séculos 20 e 21. Como cidadão humanista, foi além da fotografia e usou sua energia para melhorar o mundo ao replantar parte da Mata Atlântica. Ele não apenas fotografou florestas, fez uma floresta para o Brasil e o mundo.

Paulo Sérgio Pinheiro faz parte do seleto grupo de personalidades que compõem os defensores de direitos humanos nas Nações Unidas. Foi o relator especial da ONU para a tragédia social em Myanmar e líder da Comissão Internacional encarregada de investigar crimes de guerra cometidos pelo governo da Síria. Foi secretário de Direitos Humanos e um dos sete membros da Comissão da Verdade que apurou os crimes da ditadura militar no Brasil. Intelectual renomado, cientista político formado na Sorbonne, publicou livros que marcam o entendimento da democracia, da violência, do autoritarismo e dos movimentos populares na América Latina. Entre seus livros, estão Escritos indignados, O Estado na América Latina, O Estado autoritário e movimentos populares, Democracia x Violência, Direitos humanos no século XXI.

Jurandir Freire nasceu em Recife, na safra de 1944. Formado em medicina, logo escolheu a psiquiatria e a psicanálise. Depois de estudar na França, voltou ao Brasil e se fez um dos professores e intelectuais que são adotados como mestre por profissionais e seguidores da psicanálise, da subjetividade e da filosofia da mente. Impossível entender a psiquiatria no mundo atual sem referência a seus livros Violência e psicanálise, História da psiquiatria no Brasil e O ponto de vista do outro.

Carlos Alberto Libânio Christo, o Frei Betto, é exemplo do comportamento e do pensamento no Brasil. Sem romper com sua formação católica, promoveu ruptura no arcabouço dos dogmas tradicionais. É um dos grandes escritores do Brasil. Em Fidel e a religião fez um hino ao diálogo, com a radiografia do encontro entre frade dominicano e governante marxista; com A mosca azul: reflexão sobre o poder, Batismo de sangue e Alfabetto: autobiografia escolar, demonstra ser rigoroso observador do mundo, da política e da vida; com A obra do artista: uma visão holística do universo e Sinfonia universal — a cosmovisão de Teilhard de Chardin, se afirmou como filósofo e teólogo. Militante contra a ditadura, preso e torturado, jamais abriu mão de defender o que julga ser o melhor para a alma e a vida do povo brasileiro.

João Câmara, um dos maiores pintores do Brasil, em todos os tempos, e do mundo, nos tempos atuais, faz parte da Safra 44. Além de desenhista, gravurista, professor e crítico de arte, é dono de um estilo inimitável, premiado internacionalmente em inúmeras exposições individuais no país e no exterior. Graças à variedade e à ousadia de sua obra, é o mais versátil de nossos pintores. Pioneiro no uso de ferramentas digitais para compor seus quadros mais recentes, é não apenas grande pintor, também um vanguardista que rompe paradigmas na forma e na técnica da pintura.

Felizmente, gente não é vinho.

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postado em 02/07/2024 06:00
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