Há muito tempo, estava em Lisboa com a minha mulher e fui às compras em um supermercado. Não eram muitos nem fartos àquela época, mas um português, quando ouviu meu sotaque brasileiro, não resistiu e perguntou: "É verdade que, no seu país, quando você pega um produto na prateleira e chega no caixa para pagar o preço aumentou?"
Tive que concordar. No último mês, antes de o Plano Real entrar em vigor, a taxa de inflação foi de 46%, o que resultou em índice escandaloso no fim do ano. Semelhante à inflação alemã ou mais recentemente ao período mais tenebroso da economia argentina. Quem viveu aquele período lembra que o brasileiro aprendeu a comprar freezer, coisa que não é comum nas residências nos países com moeda estabilizada. O consumidor recebia o salário e comprava tudo no mesmo dia. E colocava no freezer. Se esperasse 24 horas, a compra ficaria mais cara.
Essa mania não cessa rapidamente. Quando uma amiga foi fazer um curso na Itália, em Roma, alugou um apartamento e, na primeira oportunidade, saiu para fazer compras no supermercado mais próximo. E fez compras de mês. Mania nacional até hoje. Na hora de pagar, o gerente do estabelecimento veio correndo saber o que estava acontecendo. Ele perguntou: "É guerra?".
O gerente entendeu que ela estava se adiantando a algum acontecimento sério que provocaria racionamento de víveres. Na Europa, o primeiro alarme é sempre ligado à possibilidade de guerra. A amiga tranquilizou o vendedor, foi embora e percebeu que, naquele país, mesmo assolado pelos conflitos bélicos, as pessoas fazem compras aos poucos, quase todos os dias, na medida da necessidade. Não há estoques. Nem freezers. Com inflação baixa, a vida é previsível e tranquila. Sem inquietações provocadas por planos econômicos. No Brasil, ao contrário, nos anos 1980, os camelôs nas cidades vendiam camisetas com a frase: "Odeio economistas".
E com razão. O país se transformou em laboratório de experiências de economistas que tinham, segundo eles, planos excepcionais para conter a inflação e transformar o Brasil em país de primeiro mundo. O primeiro deles, o Plano Cruzado, no governo Sarney, congelou os preços e criou uma tablita que fazia um cálculo curioso para aplicar um deságio e reduzir as parcelas vincendas de qualquer bem adquirido a prazo. Muita gente quebrou porque, ao final de um financiamento de 24 meses, as prestações não valiam mais nada. O plano durou pouco mais de um ano, o tempo de uma eleição, e naufragou logo depois. Após essa experiência, vieram diversas outras até o confisco do dinheiro no primeiro dia do governo Collor. Foi um desastre.
De desastre em desastre, o Brasil chegou ao governo Itamar Franco, que substituiu Collor depois do impeachment. O presidente fez várias tentativas de ministros da Fazenda até chegar ao nome de Fernando Henrique Cardoso, que era titular do Ministério de Relações Exteriores e estava feliz no seu cargo. Ele visitava a Rússia quando recebeu o convite. O embaixador Sebastião do Rego Barros, que era o titular em Moscou, foi encarregado de transmitir o recado de que o presidente Itamar queria falar com seu ministro. Fernando Henrique balançou, tentou negar, mas o presidente foi enfático e quase impôs a nova responsabilidade.
Havia, também, o problema da dívida externa, que pesava muito nas contas no país. FHC reuniu o grupo de economistas, originários da PUC do Rio de Janeiro, e entregou a eles a responsabilidade de acabar com a hiperinflação no Brasil. Ao lado disso, Pedro Malan negociou com os credores externos a redução da dívida, que terminou por ser quitada no governo Lula. Hoje, o Brasil não tem dívida externa, nem hiperinflação. Pouca gente se lembra desse esforço monumental e do resultado positivo do Real, que entrou em vigor há 30 anos. E deu certo. A inflação deste ano no Brasil deverá ser ao redor de 3,5%. Nada parecido com o que havia antes.
O Plano Real ajudou muito a eleição de Fernando Henrique Cardoso para presidente da República. Foi eleito e reeleito. Antes do Plano Real, FHC tinha dificuldades para se eleger deputado federal por São Paulo. O Plano Real teve, para a economia brasileira, a mesma dimensão que a Constituinte teve para a política nacional. Foi o momento em que a democracia brasileira começou a se ajustar ao mundo. O país deixou de ser um pária (houve momento, em um dos planos fracassados, que o Banco do Brasil ficou sem recursos no exterior). Moeda estável significa seriedade e previsibilidade. A anunciada Reforma Tributária poderá completar o quadro de providências institucionais que deverão modernizar o país. O PT, 30 anos atrás, foi contra o Plano Real. O partido também votou contra a aprovação do texto Constitucional em 1988. Mas é melhor esquecer esses detalhes.
*André Gustavo Stumpf, Jornalista
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