Em julgamento, a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 982, do pleno do Supremo Tribunal Federal (STF), tem como relator o eminente ministro Flávio Dino. O julgamento afeta diretamente a definição de responsabilidade dos dirigentes dos poderes e dos órgãos autônomos com extração constitucional equivalentes, Ministério Público e Tribunal de Contas. Também vai definir a amplitude das competências dos tribunais de Contas, ou mantendo o balizamento haurido em secular lições dessas instituições ou reformando esse balizamento.
A tradição na responsabilização é a distinção entre dirigentes políticos, situados no ápice dos Poderes e órgãos autônomos com extração constitucional equivalentes, e a responsabilização dos agentes administrativos dos diversos escalões hierárquicos, estruturados sistemicamente.
Os primeiros podem se liberar de atividades administrativas, por delegação ou definição normativa. Assim o fazem os presidentes do Tribunal de Contas da União, do STF, do Senado e da Câmara Federal. Nas demais esferas de governo, ocorre o mesmo, ou seja, um dos primeiros atos dos dirigentes situados na cúpula dos poderes é delegar competência para as instâncias administrativas, para execução de atos administrativos das mais diversas espécies.
Na esfera administrativa, estrito senso, as competências são definidas por lei ou regimento interno, cabendo a cada um dos órgãos o exercício das competências previamente definidas e limitadas. Nesse âmbito, vigora a regra de que o superior hierárquico não responde pelos atos do subordinado, que exorbitar as ordens recebidas, salvo conivência. Essa estrutura permite que, em cada caso, seja apreciado o elemento subjetivo da responsabilização. Funciona com uma precisão lógica: cada qual exerce a competência nos limites e a respectiva responsabilidade: segregação de funções e individualização das condutas.
Esse modelo permite que a competência dos julgamentos fique estabelecida em relação aos órgãos julgadores. Assim, o chefe do Poder Executivo presta contas de sua atividade por meio das contas anuais, que são julgadas pelo Poder Legislativo, após a emissão de parecer técnico dos tribunais de contas.
As autoridades situadas no escalonamento hierárquico feito por organização sistêmica, das diversas áreas de atuação, têm suas contas julgadas pelo próprio Tribunal de Contas. Trata-se de reserva constitucional, inserida no artigo 71, inciso II, da Constituição Federal. Reserva constitucional, o julgamento de contas é uma espécie de jurisdição administrativa; o Judiciário somente pode exercer o controle quando violadas as garantias fundamentais, como ampla defesa, contraditório e devido processo legal.
A complexidade da atividade administrativa, sempre crescente, veio inovar no ordenamento jurídico, em que autoridades políticas, dirigentes de poder, passaram a praticar atos administrativos típicos, como homologar licitação, exercer poder punitivo e até ordenar despesas.
Os tribunais de contas tiveram diante de si esses atos e, usando as regras tradicionais do balizamento administrativo, passaram a considerar regulares e irregulares, dentro do quadrante decorrente do enquadramento da legalidade desses atos. A complexidade que exsurge é que essas autoridades, praticando atos ordinários de gestão, buscaram isentar-se da responsabilidade, invocando prerrogativas próprias dos cargos que exercem.
Há mais de um século, na Itália, de Ferrara, ensina-se que a autoridade que desce do seu pedestal para praticar atos comuns há de ser julgada como os comuns. Desse modo, não se lhes aplica o regime próprio da responsabilização, porque foi decisão da própria autoridade despir-se das prerrogativas que o direito estabelece em favor dos superiores interesses públicos.
Assim, os tribunais de Contas, coerentes com essa lição, passaram a distinguir atos pertinentes às contas anuais e os atos pertinentes à gestão. Prefeitos que passaram a praticar atos de gestão foram submetidos ao julgamento nos tribunais de Contas. Ao contrário, os que exerceram apenas funções políticas, como sancionar leis e exercer atividades de representação institucional, continuaram a ser julgados pelo Poder Legislativo, apenas. Nesse caso, a intervenção do Tribunal de Contas limita-se à emissão de parecer técnico, que, prestigiado pela Constituição Federal, só pode ser desconsiderado por quórum qualificado.
Os tribunais de Contas, inclusive o TCU, julgam prefeitos e governadores, diante da prática de ato típico de ordenador de despesas; jamais quando exercem apenas atividades institucionais. Essa precisão lógica, assentada há mais de século, volta à discussão nessa ADPF.
O STF tem agora a prerrogativa de manter o modelo, prestigiando algumas poucas recentes decisões isoladas para inaugurar um novo balizamento jurídico. Esse novo modelo determinaria que uma autoridade que tem prerrogativa própria de responsabilização, quando praticasse ato administrativo comum, típico de ordenador de despesas, não mais fosse apreciada pelo Tribunal de Contas. Assim, o prefeito que julga recursos de uma licitação proclama a homologação e interfere diretamente nas unidades técnicas subalternas, avocando a responsabilidade pela prática de atos, as tornaria imune à incidência da competência do art. 71, inc. II, da Constituição Federal.
Adotado esse novo modelo, não tardarão a concentração de atos e o completo esvaziamento do controle de recursos públicos, nos moldes da tradição. Se é verdade que o modelo tem suas falhas, não é menos verdade que os tribunais de contas vêm empreendendo muito vigor para resgatar essa dívida com a sociedade, que correta e incessantemente, cobra maior eficiência.
Mantido o modelo anterior, as autoridades políticas que dirigem poder continuarão a ter julgamento diferenciado se contiverem suas ações no âmbito das atividades institucionais. Assim, deverão continuar com transferência da competência nos limites das segregações de funções escalonadas hierarquicamente e subalternas. Por esse quadrante não só jurídico, mas lógico, é que a ADPF deve ser conhecida e julgada procedente.
Jorge Ulisses Jacoby Fernandes
Advogado, mestre em direito e fundador da Jacoby Fernandes & Reolon Advogados Associados