Nos protestos inflamados contra o PL do Aborto, uma das menções mais recorrentes foi de que o projeto, se aprovado, impactaria principalmente meninas de até 13 anos, porque elas são as principais vítimas de estupro no país. Não à toa, a proposta passou a ser chamada de PL da Gravidez Infantil. Essa informação foi repetida, a título de argumento, por vários setores da sociedade, inclusive, integrantes do Congresso e do governo contrários ao texto.
Fiquei surpresa, porque a impressão que eu tinha era de que a barbárie da violência sexual contra crianças e adolescentes ainda estava sob o manto da invisibilidade, dada a inércia quase geral no seu enfrentamento, a começar pelo Estado. Agora, ficou claro que não falta informação. Então, pergunto eu: se existe esse nível de conscientização sobre a atrocidade, por que não a combatemos efetivamente?
Somos, sim, um país assolado pela epidemia de abuso sexual contra meninos e meninas. E não é de hoje. Ano a ano, as estatísticas mostram que falhamos miseravelmente — Estado, sociedade e família — no dever de protegê-los.
O estudo mais recente foi divulgado na última terça-feira. O Atlas da Violência mostrou que, em 2022, a agressão sexual foi a principal forma de violência contra crianças e adolescentes na faixa etária de 10 a 14 anos: 49,6% dos registros no Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan), do Ministério da Saúde. Entre bebês e crianças até 9 anos, o patamar chegou a 30,4%
Já havia citado aqui o levantamento do Instituto Liberta, com dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública de 2022: dos estupros registrados em todo o território nacional, 61,3% foram cometidos contra menores de 13 anos. Isso significa mais de quatro meninos ou meninas abusados sexualmente por hora. E o crime tem um padrão ainda mais covarde: em 82,5% dos casos, os agressores são pessoas conhecidas e da confiança das vítimas, a maioria familiares ou parentes.
São números que dão um vislumbre da perversidade a que essa camada mais vulnerável da população é submetida rotineiramente neste país. Mesmo assim, predomina a cultura do silêncio na sociedade, como se não quisesse enxergar a dimensão gigantesca da chaga e suas consequências seríssimas.
É, obviamente, uma violência complexa de ser combatida, porque ocorre, em sua grande maioria, no ambiente doméstico. Mas justamente por isso tem de envolver União, estados, municípios, cidadãos e empresas na definição de ações de enfrentamento. A complicação do problema não pode servir de desculpa para omissão.
Vimos agora no caso do PL do Aborto a força da mobilização nacional, inclusive, com manifestações de rua organizadas muito rapidamente. Um movimento que aparenta ter sido bem-sucedido. Por que não fazemos o mesmo para pressionar o poder público a agir na proteção de crianças e adolescentes? O sofrimento de cada um deles diz respeito a todos nós.
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