Na cama hospitalar, o pobre Qorpo Santo está deitado, amarrado pelos braços e pelas pernas. Ele está consciente e se debate tentando soltar-se. O quadro dantesco se passa na clínica do Dr. Eiras, também chamada Hospício Pedro II, no Rio de Janeiro. Ali, o jornalista e dramaturgo revolucionário foi internado depois de ser declarado monomaníaco e incapaz de gerir os próprios bens. O Dr. Fleury se aproxima do leito com uma máquina de choques elétricos nas mãos. Entrega o aparelho ao Dr. Medeiros Delfim. Começa a tortura com choques. Qorpo Santo grita e estrebucha várias vezes.
O acima relatado é uma cena de minha ópera Qorpo Santo, que aconteceu em estreia mundial, no palco da Sala Villa-Lobos do Teatro Nacional de Brasília, em dezembro de 1983. Os nomes que dei aos personagens torturadores eram bem conhecidos. Qualquer semelhança não era mera coincidência. O personagem Dr. Fleury se inspirava em Paulo Sérgio Paranhos Fleury, o delegado da Polícia Civil de São Paulo que era conhecido como o mais sanguinário agente da repressão. O ator que interpretava esse papel era Chico Expedito.
O personagem Dr. Medeiros Delfim encarnava duas figuras perversas: o tenente-coronel Octávio Aguiar Medeiros e o economista Delfim Netto. O primeiro, Medeiros, era o famoso torturador de presos nas dependências da 4ª Região Militar. O segundo, Dr. Delfim, era um dos signatários do AI-5, decreto que ampliou a perseguição e repressão contra a esquerda revolucionária. Medeiros Delfim era interpretado pelo baixo Zuinglio Faustini, que acumulava o papel de Satanás. Faustini contracenava brilhantemente com a soprano Martha Herr (Dona Ignácia) e o barítono Eládio Perez-Gonzalez (Qorpo Santo).
No primeiro ensaio, no fim de outubro de 1983, fiquei um pouco tenso porque, estando o teatro fechado, entraram e se sentaram nas primeiras fileiras o Dr. Carlos Fernando Mathias, então diretor-executivo da Fundação Cultural do Distrito Federal, e dois homens, também engravatados, desconhecidos. Só 31 anos depois, em 2014, vim a entender o significado da presença daquele trio de engravatados no ensaio fechado.
Saía eu do Sarah Brasília, após sessão de turbilhão no pé acidentado, quando dei de cara com Carlos Mathias desembarcando de um carro, certamente para também ser atendido no hospital. Não nos víamos há décadas. Nos abraçamos e, em breve conversa sobre o passado, ele disse ter-me livrado da prisão e conseguido, com dificuldade, em 1983, a liberação da ópera Qorpo Santo da censura. Os milicos não gostaram de meus personagens Dr. Fleury e Dr. Medeiros Delfim. Carlos Mathias intercedeu convencendo os censores de que tudo se tratava de coincidência, concluindo minha defesa dizendo a eles: "Entendam! Isso é coisa de artista!".
Carlos Mathias morreu, aos 85 anos de idade, em 8 de maio passado. As diversas matérias jornalísticas sobre a morte e os diversos obituários trataram de enaltecer o grande magistrado que integrou o TRF-1, o TRE-DF e o STJ. Os articulistas ressaltaram os méritos do grande docente, as centenas de prêmios e títulos por ele recebidos e a enorme contribuição dada ao estudo do direito autoral. Mas todos se esqueceram de relembrar o fato de que ele foi o melhor gestor da área cultural local, quando foi diretor-executivo da Fundação Cultural do Distrito Federal, no fim dos anos de 1970 e no início da década seguinte.
Carlos Mathias, no período em que esteve à frente da Fundação Cultural, foi um incansável incentivador, apoiador e protetor da arte e dos artistas do DF. Muitas de suas ações eram veladas, desconhecidas da classe artística e do público, em trabalho de blindagem da arte nova e de jovens artistas contra a censura, mediando, em nosso favor, no trato com o regime militar. No período de sua gestão cultural, éramos felizes e não sabíamos.
Para apoiar e tornar exequível a montagem da ópera Qorpo Santo, Carlos Mathias não mediu esforços. Disponibilizou alguns milhões de cruzeiros, solicitou figurinos por empréstimo no Theatro Municipal de São Paulo, conseguiu apoio do BRB, da Telebrasília e do Inacen.
Realmente, éramos felizes e não sabíamos, pois, na Fundação Cultural, tínhamos uma marcenaria completa com profissionais qualificados, uma gráfica que imprimia, sem custos para artistas e produtores, todo material gráfico. Contávamos também com um time maravilhoso de costureiras e um rico acervo de figurinos, acessórios, chapéus e objetos de cena que eram usados nas memoráveis Temporadas Lìricas do Teatro Nacional. Eram encenadas óperas do repertório tradicional, como La Bohème e O barbeiro de Sevilha, mas também óperas desconhecidas, como Colombo de Carlos Gomes e A vingança da cigana de Leal Moreira.
Imagino que o saudoso magistrado sofreu muito ao ver fechado, já por 10 anos, o Teatro Nacional, cuja construção ele ajudou a concluir em 1979.
*Jorge Antunes: Maestro, compositor, membro da Academia Brasileira de Música