"O aborto já é livre no Brasil. É só ter dinheiro para fazer em condições até razoáveis. Todo o resto é falsidade. Todo o resto é hipocrisia." (Drauzio Varella)
Não obstante a afirmação do conhecido médico, a Câmara de Deputados aprovou o regime de urgência ao Projeto de Lei nº 1.904/2024, de autoria do deputado Sóstenes Cavalcante (PL- RJ), que equipara o aborto ao homicídio simples quando a gestação for interrompida a partir da 22ª semana, inclusive em casos de estupro. O primeiro ponto que chama a atenção diz respeito ao regime de urgência previsto no artigo 153 do Regimento Interno da Câmara.
Não há aparentemente nada que justifique a tramitação em regime de urgência a não ser a nítida intenção de acelerar o projeto, contra o processo democrático de discussão de questões de interesse nacional da sociedade no Congresso e, diminuir, portanto, a qualidade do debate público sobre a matéria.
Não resta a menor dúvida de que o Poder Legislativo tem ampla competência para discutir todas as matérias que envolvam sua atribuição, e isso é um espaço sagrado conferido a ele pela Constituição brasileira.
Mas será realmente que o que move o Legislativo é o interesse público e social? Ou simplesmente a vontade de se contrapor, por exemplo, ao Supremo Tribunal Federal (STF), que está em vias de julgar a constitucionalidade de uma resolução do Conselho Federal de Medicina que proíbe uma prática médica abortiva mesmo nos casos de aborto legal? Registre-se que, atualmente, não há no Código Penal um prazo máximo para o aborto legal. Com exceção dos casos em que não há punição, a lei prevê detenção de um a três anos para a mulher que faz o procedimento.
O Poder Legislativo precisa se conscientizar de que pode, sim, superar as decisões do STF, seja por intermédio de emendas constitucionais, seja por intermédio de uma série de diálogos possíveis, mas esse processo deve ser maduro e não por meio de represálias infantis. Infelizmente, a hipótese da qual se parte é de que, no Brasil, as interações entre o Poder Legislativo e o Judiciário, em matéria de controle de constitucionalidade e aprovação de emendas à Constituição, se caracteriza como uma sobreposição de monólogos em que cada um dos personagens tenta fazer prevalecer sua posição sem grandes tentativas de incorporar as contribuições de seu interlocutor, do que propriamente como um autêntico diálogo institucional.
Isso é uma pena porque há boas contribuições e lições de diversos países em que o diálogo foi possível mediante um exercício de aprendizado recíproco entre ambos os poderes, que têm o direito de terem visões diferentes da Constituição. É também direito do Poder Legislativo reagir às decisões do STF, reacendendo o debate constitucional e iluminando a sociedade para novas interpretações constitucionais.
Por quaisquer dos caminhos, há convergências relevantes a serem consideradas e buscadas na questão. A primeira é expor, de forma clara, com o que e quem realmente nos importamos. O quadro de violência pela via do estupro contra meninas, adolescentes e mulheres está muito bem contextualizado nos dados da segurança. Cidadãs precisam ser socorridas e amparadas pelo Estado, instrumento constituído para atender ao interesse da sociedade. Suprimir esse direito é ato de violência.
Se nos importarmos com elas sem juízos de valor pré-concebidos, o enredo do debate ganha contornos importantes para se admitir a necessidade da segunda convergência: a obrigação de ultraconservadores, moralistas, liberais, ultraesquerdistas e de qualquer corrente de pensamento ter postura de respeito perante a necessidade de construirmos um estado civilizatório que permita a convivência social edificante.
Eleito, o Congresso Nacional pode espelhar o que somos como sociedade. Mas, no exercício dos mandatos, os congressistas precisam decidir por seus atos que tipo de nação vão influenciar a construir.
*Marcelo Figueiredo, advogado, Consultor Jurídico e professor-associado de direito constitucional da Faculdade de Direito da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.
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