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ARTIGO

Vale a pena mesmo não envelhecer?

O envelhecimento não começa e acaba no próprio indivíduo: este, afinal, vive, inescapavelmente, em sociedade — logo, há desdobramentos éticos, morais, sociais, econômicos, culturais

Juventude e velhice, para quem olha o mundo atual, quase parecem duas fortalezas inimigas, incomunicáveis, irreconciliáveis -  (crédito: Rod Long/Unsplash)
Juventude e velhice, para quem olha o mundo atual, quase parecem duas fortalezas inimigas, incomunicáveis, irreconciliáveis - (crédito: Rod Long/Unsplash)

» Cláudio L. Lottenberg*

Juventude e velhice, para quem olha o mundo atual, quase parecem duas fortalezas inimigas, incomunicáveis, irreconciliáveis. O segundo termo assumiu ares de tabu, algo de que não "pega bem" falar abertamente — bem ao contrário do primeiro. Esse suposto antagonismo ganha até um ar de radicalidade, por exemplo, na canção My generation, do grupo The Who: "I hope I die before I get old" (Espero morrer antes de ficar velho).

Atual como seja, esse conflito não surgiu ontem. Oscar Wilde e George Bernard Shaw, um tanto amargos, teriam dito: "A juventude é desperdiçada nos jovens". O Fausto, de Goethe, faz um pacto para jamais envelhecer. Cícero se debruçou sobre isso na Roma Antiga: "A natureza fixa os limites convenientes da vida como de qualquer outra coisa. Quanto à velhice, ela é a cena final dessa peça que constitui a existência".

São uns poucos exemplos de como arte e filosofia veem a difícil relação do homem com a passagem do tempo. E essa questão faz limite com outra, já visível em Cícero: a da mortalidade — e seu reverso: a da imortalidade.

Hoje, dispomos de aprimoramentos científicos que muito evoluíram desde a revolução promovida por Galileu Galilei há cerca de 400 anos. Esses aprimoramentos levaram alguns a pensar em interromper, e reverter, o envelhecimento. Há um empresário norte-americano que, já bem entrado nos 40 anos, gastou fortunas para voltar a ser (fisicamente, claro) quem era aos 18 anos — uma espécie de Benjamin Button (de Scott Fitzgerald). Outro — Jeff Bezos, da Amazon — criou uma startup que pesquisa "reprogramação celular" para fazer com que células rejuvenesçam.

Rejuvenescer, tornar-se imortal, são noções que ressoam tão fundo que o fascínio que criam ofusca detalhes mais próximos da vida fora do sonho, por assim dizer. Não se pode perder de vista que o envelhecimento não começa e acaba no próprio indivíduo: este, afinal, vive, inescapavelmente, em sociedade — logo, há desdobramentos éticos, morais, sociais, econômicos, culturais.

Pesquisar o rejuvenescimento e a longevidade deve ser tema de debate contínuo e cuidadoso. E por que isso? A inovação, por exemplo, seria afetada. Um mundo com seres imortais, ou permanentemente jovens, culminaria em um mundo sem mentes novas, novas visões sobre as coisas, novas opiniões e sensibilidades. Criatividade, inovação e progresso são resultado de ações humanas que só surgem em meio à renovação de perspectivas e ideias que vêm com novas gerações. Estagnação intelectual e cultural, falta de inovação, monotonia seriam as consequências (bastante indesejadas), e a vida seria um tédio sem fim.

Mais indesejada ainda seria a estagnação social. A idade pode até parar de avançar, mas a economia não — e os desafios que esta apresentaria encontrariam uma humanidade bem menos capaz de se adaptar para superá-los. Muitos jovens empreendedores criam startups e empresas que impulsionam a economia e geram empregos. Mas "jovens", aqui, significa necessariamente novas gerações, mentes jovens, visões novas.

Sempre acreditei na renovação pessoal — entendida como convivência entre as gerações nova e velha: se esta traz o legado de experiência e repertório para interpretar a realidade, aquela traz renovação emocional e mental, o sentido de continuidade e confiança no futuro. Nada disso haveria em um mundo de seres quase imortais. Novas gerações são essenciais para o progresso contínuo e para enfrentar desafios emergentes com lideranças renovadas, de maneira criativa e dinâmica.

Isso significa que se deve coibir o avanço de intervenções genéticas e epigenéticas, manipulações farmacológicas, rejuvenescimento celular, dietas? De modo algum. Não só não se pode recolocar o gênio na garrafa, como diz o ditado, como, talvez, até impedisse que viéssemos a encontrar, quem sabe, curas e tratamentos há muito aguardados.

A questão "Vale a pena jamais envelhecer?" transcende medicina e ciência. Não por acaso lembrou-se aqui de como arte, filosofia e religião se postaram sobre isso: foi com esses instrumentos que a humanidade sempre buscou respostas. A ciência moderna chega como um (grande) reforço. Mas aquelas ferramentas continuarão a ser usadas. Porque, com elas, manifestamos o que nos faz humanos — e não há como nos despirmos de nossa humanidade, como se fôssemos observadores neutros no alto de uma torre. Não há torre: há a planície, na qual todos nós, humanos, nos igualamos.

Steve Jobs falou da morte de maneira notável em seu discurso aos formandos da Universidade Stanford, em 2005: a consciência da morte pode ser uma força motivadora para viver uma vida plena, autêntica e significativa. Saber que "a natureza fixa os limites convenientes da vida" ajuda a manter o foco no que importa.

Quem tiver visto o filme Highlander - O guerreiro imortal (1986) vai se lembrar da questão posta na música-tema, do grupo inglês Queen: "Who wants to live forever?" (Quem quer viver para sempre?). Nem vida nem juventude são eternas — e, para que continuem a valer a pena, talvez nem devam ser.

*Médico e presidente do Conselho Deliberativo da Sociedade Beneficente Israelita Brasileira Albert Einstein e presidente do Instituto Coalizão Saúde (Icos)

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postado em 24/06/2024 06:00
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