Todos os governos são desorganizados, mesmo aqueles que têm a aparência mais monolítica. Passei, anos atrás, pelo Checkpoint Charlie, em Berlim, ainda dividida pelo muro, sob olhos atentos de soldados soviéticos armados que revistavam as pessoas com cara de poucos amigos e passavam espelho debaixo do veículo. A impressão é de que aquele regime, fortíssimo, iria perdurar por séculos. Tudo funcionava com impressionante qualidade, horário e eficiência.
De um dia para outro, o muro caiu, e a Alemanha Comunista, ou República Popular da Alemanha, deixou de existir. Sumiu. Foi tragada pela história. Dela, só restam a memória e alguns veículos Trabant, vendidos como relíquia. Do muro, resistiram alguns pedaços, negociados à guisa de lembrança. Uma amiga passou por Berlim, trouxe alguns pedaços do monumento ao comunismo e colocou na sala de casa. A arrumadeira jogou tudo no lixo. Achou que era resto de alguma obra.
É necessário, portanto, ter alguma desconfiança sobre aquilo que é mostrado no terreno da política. Os olhos enganam, a mente trapaceia e há uma propensão do ser humano a custar a perceber o que enxerga. Alguns não conseguem simplesmente entender. A Constituinte brasileira de 1988 começou a funcionar quando a guerra fria estava perto do fim e o conflito no Leste-Oeste começava a sair de moda. O muro foi derrubado em novembro de 1989. Naquela época, houve quem enxergasse até, por exagero, o fim da história.
A história não parou e, agora, o mundo se vê de novo diante de situações muito semelhantes às de cem anos atrás. Os constituintes não podiam entender que viviam em um momento de profunda mudança política e econômica. O Brasil estava saindo de um regime militar forte, centralizado, que cometeu erros profundos. Trabalhou com base na tese de que a presença do governo na economia era imprescindível. Surgiram diversas empresas estatais. A esquerda, curiosamente, participa do mesmo pensamento. Na época, foi criada a reserva de mercado para informática, com o objetivo de favorecer empresas brasileiras do setor, defendida pela direita e pela esquerda. A consequência foi o aumento do contrabando.
Os tempos mudam e encenam algum retorno. A guerra da Ucrânia se parece bastante com a guerra civil espanhola, nos anos 30 do século passado. Foi o momento em que as grandes potências da época testaram as principais armas de ataque para matar espanhóis em nome de alguma ideologia. Depois, ocorreu a guerra total, que se concluiu com a destruição da Alemanha e as bombas atômicas de Hiroshima e Nagasaki. Mais de 50 milhões de mortos. As pessoas esquecem, ou não conhecem o passado. Revisitá-lo só deveria acontecer por intermédio dos livros. Mas uma direita violenta e antidemocrática emerge com força na Europa e nos Estados Unidos. À primeira vista, trata-se de uma reação às correntes migratórias ocasionadas pela pobreza na América Central e pelas guerras no Oriente Médio e na própria Europa. É apenas um argumento. Fundamental é necessário encontrar o inimigo interno ou externo.
Era raro encontrar algum parlamentar, durante a Constituinte de 1988, que se declarasse de direita, porque significava estar ao lado dos governos militares. Agora, ao contrário, sobram direitistas que pretendem retornar aos tempos do AI-5. Provavelmente, não sabem do que estão falando. E o governo brasileiro, comandado pelo PT, não consegue se desvincular daquelas ideologias que prosperaram nos anos 70. É necessário ter olhos de ver e ouvidos de ouvir. O PT já experimentou a decepção com os governos de Dilma Rousseff. Desastre monumental.
Volto ao início. Todos os governos são desorganizados. O de Lula não foge à regra. Ministros brigam, desentendem-se, há interesses ocultos e muita gente que simula caminhar na mesma direção. Existe, sempre, um núcleo que comanda o governo, traça as principais diretrizes e tenta obter resultados. No caso brasileiro atual, não existem diretrizes conhecidas, sobram desgastes em relação à condução da economia. O governo não tem plano, nem persegue nenhuma meta específica. O dólar sobe e a bolsa despenca. O mercado fica nervoso e o presidente precisa vir a público garantir que o ministro Haddad permanece no seu lugar. Está prestigiado.
Está faltando governo no Brasil. No sentido de ser vanguarda, propor soluções inteligentes e desafiadoras. O brasileiro precisa sair da província e entender que o mundo está em mudança e que, só com o próprio esforço, poderá superar suas chagas. É bom lembrar que, há exatos 50 anos, o Brasil restabeleceu relações diplomáticas com a China, contra a opinião dos mesmos militares e civis que, agora, querem retornar ao autoritarismo. Os chineses tinham Produto Interno Bruto inferior ao do Brasil naquela época. Hoje, eles são a segunda economia do mundo, às vésperas de se tornarem a primeira.
André Gustavo Stumpf, jornalista
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