Artigo

Quem vai proteger as pessoas idosas?

Tratar adequadamente as pessoas idosas é um dever social e, portanto, toda e qualquer pessoa tem o dever de se opor, de impedir que elas sejam violadas

 A elevação da proteína tau no cérebro pode indicar com antecedência que a doença se 
instalará   -  (crédito: Sabine van Erp por Pixabay)
A elevação da proteína tau no cérebro pode indicar com antecedência que a doença se instalará   - (crédito: Sabine van Erp por Pixabay)

LAURA BRITO*

O 15 de junho é o Dia Mundial de Conscientização da Violência contra a Pessoa Idosa. Reconhecida desde 2011 pela Assembleia Geral das Nações Unidas, a data se deve aos desafios que essa população enfrenta para ter seus direitos garantidos e viver a salvo de desamparo e desfalques. 

A reflexão que devemos trazer a partir disso é: a quem cabe proteger as pessoas idosas? Porque a recomendação genérica de combate à violência tem poucos efeitos práticos se não compreendermos quem deve cuidar do quê. E o desafio fica por conta da constatação de que essa responsabilidade é minha, sua e de todo mundo.

A Constituição da República prescreve que a família, a sociedade e o Estado têm o dever de amparar as pessoas idosas, assegurando sua participação na comunidade, defendendo a sua dignidade e o seu bem-estar e garantindo-lhes o direito à vida. 

Veja bem. Não é só o Estado, cuja obrigação pode ficar bastante diluída. E nem é só a família, o que pode dar a falsa sensação de que o cuidado com as pessoas idosas é do âmbito exclusivamente privado. O dever de amparar as pessoas idosas e, portanto, colocá-las a salvo de violência é de toda a sociedade. 

O Estatuto da Pessoa Idosa, norma que concentra parte considerável dos dispositivos de proteção, tem um capítulo próprio dos crimes em espécie que revela as violências mais comuns cometidas contra quem tem mais de 60 anos. Tratando-se de crimes, caso ocorram, é claro que o sistema de justiça deve ser acionado: Polícia (há delegacias especializadas nas grandes cidades), Ministério Público, Conselho Municipal do Idoso.

 Mas o ideal é que eles não ocorram. E, para isso, precisamos forjar estratégias para a diminuição de suas vulnerabilidades. A partir dos crimes especificados no Estatuto da Pessoa Idosa, penso que podemos distingui-los em dois grandes grupos de violações.

Há um primeiro grupo de crimes que são atentatórios contra a dignidade, a integridade física e psíquica da pessoa idosa. São eles: a discriminação, a omissão de socorro, o abandono e a exposição a perigo. Estou convencida de que um caminho a ser tomado por todos nós, a fim de diminuir esse tipo de violência, é admitir que o cuidado e o tratamento para com a pessoa idosa não são do campo exclusivo da vida privada.

Por quantos anos os vizinhos convivem com uma pessoa idosa completamente negligenciada sem falar nada, sem confrontar os familiares, sem denunciar o abandono? Isso porque se parte da noção — equivocada, diga-se de passagem — de que o desamparo pode ser uma decisão familiar. 

Quando convivemos com uma pessoa idosa que é reiteradamente discriminada, exposta a perigo e nada fazemos, estamos sendo coniventes com a violência. Repito: tratar adequadamente as pessoas idosas é um dever social e, portanto, toda e qualquer pessoa tem o dever de se opor, de impedir que elas sejam violadas. 

O segundo grupo de crimes do Estatuto da Pessoa Idosa são aqueles que penalizam as condutas de violação patrimonial, como apropriação de bens e rendimentos, exigir procuração para prover cuidados, retenção de cartão de banco, indução de outorga de procuração, coação para doar e lavratura de ato notarial que envolva pessoa idosa sem discernimento de seus atos. 

Para evitar esses atos de dilapidação, a solução é nos afastarmos de uma cultura arraigada de administração precária da renda e do patrimônio da pessoa idosa. Em outras palavras, o costume que temos de, a partir do momento em que o idoso fica incapaz de gerir sua renda e seus bens, passar a gestão financeira para qualquer pessoa, sem meios de responsabilização por eventual negligência. 

Achamos normal que uma pessoa idosa e debilitada entregue cartão e senha para um sobrinho, que esse sobrinho repasse para um primo, que um prestador de serviço tenha acesso ao aplicativo do banco. Ou, da mesma forma, que um filho tome o cartão, resolva as coisas diretamente com o gerente conhecido, sem qualquer convergência com os irmãos. Isso sem falar nas procurações genéricas que são passadas sem controle.

Todos esses cenários são perfeitos para violência patrimonial e convivemos com eles como se nada estivesse acontecendo. Olhamos, ficamos constrangidos e não fazemos nada. Se uma pessoa, em razão da combinação de avanço da idade e declínio cognitivo, não tem mais condições de gerir sua renda e seus bens, ela deve ser curatelada. 

A curatela, obtida por meio de processo judicial, é a forma regular e legal de passar a responsabilidade da gestão financeira para um responsável, que será obrigado a prestar contas ao Judiciário e terá o cumprimento de suas obrigações observado pelo Ministério Público. Se o curador for negligente ou dilapidador, será removido e responsabilizado. 

Há caminhos para deixarmos as pessoas idosas a salvo de violências, mas esse projeto precisa ser de cada um de nós. 

*Advogada especialista em direito de família e das sucesões. Tem doutorado e mestrado pela USP e atua como professora em cursos de pós-graduação

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postado em 15/06/2024 05:00
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