Artigo

Carta aos deputados

O Estado deveria proteger a mulher e acolher todos os seus direitos. Sobretudo respeitar o seu corpo como patrimônio única e exclusivamente dela

Plenário da Câmara dos Deputados, onde foi aprovada urgência do projeto que equipara aborto após as 22 semanas ao crime de homicídio; -  (crédito: Zeca Ribeiro/Câmara dos Deputados)
Plenário da Câmara dos Deputados, onde foi aprovada urgência do projeto que equipara aborto após as 22 semanas ao crime de homicídio; - (crédito: Zeca Ribeiro/Câmara dos Deputados)

Nobre senhor deputado Sóstenes Cavalcante e colegas, espero que o mínimo de sensatez, de bom senso e de respeito pela mulher fale mais alto do que as suas convicções religiosas acompanhadas de misoginia. Fácil legislar e propor um disparate e um ultraje como esse Projeto de Lei nº 1.904/24 quando não se tem útero, quando não se corre o risco de ser estuprado e de gerar uma criança fruto de uma violência descomunal. Caso os senhores não se lembrem, ou não saibam, o aborto é caso de saúde pública, não de religião. Ah! O Estado também é laico. Graças a Deus! Não se empurra goela abaixo dos demais cidadãos sua fé ou sua crença. Os senhores são pagos por nós para legislar não para uma bolha de amigos da igreja, mas para toda a sociedade. Isso inclui católicos, umbandistas, seguidores do candomblé, espíritas, budistas e ateus ou agnósticos. São muito bem remunerados e gozam de tantas regalias para fazerem valer o bem-estar social, para pensarem no Brasil como um todo, não para transformar o país numa teocracia.

Espero, nobres deputados, que suas filhas — ou netas — não sejam algum dia vítimas de um estuprador, nem se descubram grávidas do criminoso. Caso isso aconteça, qual será sua reação? Apoiará a filha a lhe dar o neto nada desejado? Usará a Bíblia para convencê-la a não desistir do parto e lhe imporá um futuro de trauma? O Projeto de Lei 1904/24 nem sequer deveria ter sido discutido, muito menos proposto. É algo tão cretino, bisonho e medonho que envergonha qualquer brasileiro que tenha o mínimo de razoabilidade. 

Imagine uma mulher em situação de vulnerabilidade que não tenha acesso à saúde pública e se descubra gestante com mais de 22 semanas. Será obrigada pelo Estado a levar a gravidez até o fim? Será tratada como homicida se interromper a gestação? Imagine uma mulher gerando um filho de alguém que abusou sexualmente dela... Todas as vezes que amamentar a criança será torturada com as memórias traumáticas. Todas as vezes que olhar o filho saberá que carrega as feições de um estuprador. Imagine a mulher que interrompeu a gravidez com mais de 22 semanas, que foi presa, julgada e condenada por assassinato. Enquanto o estuprador estará livre para reincidir em seis anos, ela ficará atrás das grades por duas décadas. Perderá boa parte de sua vida, já desgraçada pela violência sexual.

O Estado deveria proteger a mulher e acolher todos os seus direitos. Sobretudo respeitar o seu corpo como patrimônio única e exclusivamente dela. O Estado tem a obrigação moral de deixar a Bíblia ou o proselitismo religioso do lado de fora do Congresso Nacional. Não me interessa se tal deputado é evangélico, católico, ateu ou satanista. O que me interessa é que não imponha seus dogmas ao resto dos cidadãos. Nem seu ultraconservadorismo, muitas vezes recheado de hipocrisia e de libertinagem. Se os senhores, nobres deputados, julgam viver em uma democracia, então, que governem pelo povo e para o povo. Respeitem as mulheres. Não se sintam no direito de usurparem os corpos delas. E arquivem esse projeto de lei vergonhoso, antes que transformem o Brasil numa nação de fanáticos.

 

 

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postado em 19/06/2024 06:02 / atualizado em 19/06/2024 10:40
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