Antoine Daher*
O teste do pezinho é o exame realizado entre o terceiro e o quinto dia de vida do recém-nascido, detecta, de forma absolutamente precoce, algumas doenças congênitas e faz parte do Programa Nacional de Triagem Neonatal (PNTN), um marco significativo na história da saúde pública brasileira. Até 2021, esse teste, que já era fundamental e obrigatório, conseguia identificar apenas seis doenças. Mas, graças à Lei nº 14.154, passou a incluir a detecção de uma gama mais abrangente de até 50 condições, incluindo algumas de origens metabólicas, genéticas, endócrinas e imunológicas. Apesar de celebrarmos os avanços, sabemos que, na prática, a ampliação ainda não funciona como deveria em todo o território brasileiro. Não é incomum encontrar hospitais que não oferecem o teste ampliado ou bebês que não tenham realizado o exame, principalmente em regiões mais remotas do país.
Entre as doenças detectadas no teste do pezinho ampliado, está a fenilcetonúria (PKU, sigla em inglês), uma doença genética rara que afeta a capacidade de o organismo metabolizar adequadamente o aminoácido fenilalanina, presente em alimentos que contêm proteína. Essa incapacidade leva ao acúmulo desse elemento no sangue, tornando-se altamente tóxico para o cérebro, o que pode causar prejuízos como comportamentos autistas, transtorno de deficit de atenção e hiperatividade (TDAH), coeficiente de inteligência (QI) baixo, falta de atenção, distúrbios do sono, agressividade ou ansiedade.
Para doenças como a PKU, o teste do pezinho ampliado é crucial para o encaminhamento adequado e o início imediato do tratamento, que inclui dieta restrita e uso de fórmula metabólica. O Sistema Único de Saúde (SUS) tem um Protocolo Clínico e Diretrizes Terapêuticas (PCDT) para a doença, que também inclui tratamento medicamentoso disponível na rede pública. No entanto, sua indicação ainda é restrita a mulheres em planejamento gestacional ou já gestantes, consideradas pacientes de maior urgência clínica devido aos riscos adversos, como tremores, crises convulsivas e dificuldade de concentração, além de apresentar ameaças à saúde do bebê. Em paralelo, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) aprovou recentemente a primeira e única terapia enzimática para tratar adultos com PKU, com indicação para pacientes acima de 16 anos. No entanto, o medicamento ainda precisará passar pelo processo de avaliação de incorporação de novas tecnologias no sistema público.
É evidente que ainda há muitos gargalos a serem resolvidos. Mas o acesso ao teste do pezinho ampliado é o pontapé inicial para uma jornada que previne complicações graves e melhora significativamente a qualidade de vida dos pacientes. Um diagnóstico precoce oferece esperança e melhores perspectivas de vida para milhares de recém-nascidos e suas famílias. Consequentemente, também pode ser benéfico aos sistemas de saúde, uma vez que pode reduzir as complicações e gravidade dos quadros de saúde dessa população ao longo dos anos.
Para muitos, as doenças raras ainda são um território desconhecido, carregado de incertezas e desafios diários. As famílias que enfrentam essas condições frequentemente lidam com diagnósticos tardios, tratamentos limitados e a constante busca por informação e suporte. Acredito firmemente que, ao investirmos na concretização do direito ao acesso ao teste do pezinho ampliado, estabelecido pela Lei Nº 14.154, na melhoria dos processos de comunicação e na conscientização, podemos promover mudanças significativas.
Essa luta não se limita apenas às pessoas que convivem com doenças raras, mas tem impacto direto no futuro dos tratamentos de saúde no Brasil como um todo. E, ao enxergarmos tudo isso como um investimento na saúde da população, podemos impulsionar avanços e adentrar uma nova era baseada na medicina de precisão, que personaliza o tratamento de acordo com as características individuais de cada paciente.
Ademais, é essencial fortalecer o apoio, proporcionando-lhes recursos e orientações claras para a gestão dessas doenças. Grupos, campanhas de conscientização e políticas públicas que promovam a inclusão e o suporte contínuo são pilares indispensáveis para transformar a realidade dessas pessoas e minimizar o impacto das enfermidades em suas vidas.
*Fundador da Casa Hunter, cofundador da Casa dos Raros e presidente da Federação Brasileira das Associações de Doenças Raras (Febrararas)
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